Decisão histórica do STF: fim da prisão civil do depositário infiel
Luiz Flávio Gomes*
O Império romano acabou com a prisão civil por dívida (excepcionando-se a de alimentos) no século V A.C., quando revogou a Lex Paetelia Papiria. Os romanos concluíram que a liberdade da pessoa não podia ser tolhida em função de dívidas.
No Brasil, vinte e seis séculos depois, foi feita a mesma coisa: a histórica decisão do STF, de 3.12.08 (RE 466.343-SP), passou a constituir a certidão de óbito da prisão civil do depositário infiel.
Nesse ponto o Brasil passou a observar os atuais padrões de civilização seguidos no mundo todo.
Mas ao mesmo tempo a referida decisão também configura a certidão de nascimento de um novo modelo de Estado: o constitucional internacionalista (ou transnacional). Do Estado legalista (século XIX) passamos para o Estado constitucional (1945-1946: julgamentos de Nuremberg) e a partir de agora alcançamos o Estado constitucional internacionalista (3.12.08).
O fim da prisão civil do depositário infiel: viraram pó (no Brasil) todas as hipóteses de prisão civil em razão de depósito (Pulvis es et in pulverem reverteris – És pó e a ele retornarás). Não interessa qual é o tipo de depósito (judicial, alienação fiduciária, etc.). Nenhuma norma que cuida desse tipo de prisão civil continua válida. Acham-se vigentes, mas perderam a validade (Ferrajoli).
Como assim?
É que os tratados internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 11) só permitem a prisão civil em caso de alimentos. Não autoriza nenhuma outra prisão civil por dívida. Essas normas valem mais que a legislação ordinária no Brasil. Qualquer outra com elas conflitante não vale.
Por quê?
Porque o STF reconheceu, finalmente (por cinco votos a quatro), o valor supralegal dos tratados de direitos humanos já vigentes no Brasil (RE 466.343-SP, j. 3.12.08). Dentro do STF havia (ultimamente) duas correntes (sobre o assunto):
1ª) a sustentada pelo Min. Gilmar Mendes, no sentido de que tais tratados possuem valor supralegal (acima da lei, mas abaixo da constituição) – RE 466.343-SP;
2ª) a defendida pelo Min. Celso de Mello que admitia o valor constitucional dos tratados (HC 87.585-TO). Preponderou a primeira tese (por cinco votos a quatro).
Todos os tratados, então, contam apenas com valor supralegal?
Não. Por força da EC 45/2004 foi agregado ao art. 5º da CF um novo parágrafo (§ 3º) que confere valor de Emenda Constitucional ao tratado que for aprovado com quorum qualificado: três quintos dos votos de cada Casa,
Logo, todos que já vigoram possuem valor supralegal (não constitucional).
Se as normas dos tratados valem mais do que a lei, toda lei que conflita com eles não conta com validade. Não importa se se trata de lei anterior ou posterior ao tratado.
Que isso significa?
Significa que, a partir de agora, toda lei deve ter dupla compatibilidade vertical: com a constituição e com os tratados de direitos humanos. Qualquer antagonismo resolve-se pelo fim da validade da lei ordinária. O inferior cede em favor do superior.
Temos que admitir, por conseguinte, uma nova pirâmide jurídica no nosso país: no patamar inferior está a lei, na posição intermediária estão os tratados de direitos humanos (aprovados sem o quorum qualificado do § 3º do art. 5º da CF) e no topo está a constituição. Já não basta (para se conhecer o Direito) dominar as leis e os códigos (Estado legalista).
Doravante, só é jurista pleno quem também conta com razoável intimidade com a constituição (Estado constitucional de Direito) assim como com os tratados de direitos humanos (Estado constitucional internacionalista).
De qualquer modo, em matéria de direitos humanos quando os tratados internacionais conflitam com a constituição brasileira (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel) a solução não pode ser buscada no princípio da hierarquia. Não funciona (no conflito entre os tratados e a constituição) a hierarquia, sim, o princípio pro homine, que significa o seguinte: sempre prepondera a norma mais favorável ao ser humano. Não importa a hierarquia da norma, sim o seu conteúdo. O mais favorável prevalece. Não há que se falar em revogação da norma constitucional que conflita com o tratado. Todas as normas continuam vigentes. Mas no caso concreto será aplicada a mais favorável.
E a norma inferior (lei) que conflita com o tratado?
Perde ou não tem validade, quando conflita com o tratado. É o que ocorreu com todas as leis que cuidam da prisão do depositário infiel no Brasil. Todas perderam sua validade. E se o legislador editar nova lei disciplinando o mesmo assunto? A lei não terá validade. E quando a lei inferior é mais ampla que os tratados? Aí vale sempre a lei mais ampla, por força do princípio pro homine.
O Direito, como se vê, não se confunde com a lei. Ele começa com o constituinte e termina com a jurisprudência dos tribunais (nacionais e internacionais). A lei é uma parte desse oceano. Pode ser válida ou não: tudo depende da sua compatibilidade com as normas superiores (internacionais e constitucionais).
Convenhamos: nenhum jurista no Brasil pode ignorar a histórica decisão do STF de 3.12.08: essa data tornou-se muito importante para nós. Não só porque acabou com a prisão civil do depositário infiel, senão, sobretudo, porque inaugurou um novo modelo de Estado, de Direito e de Justiça: o constitucional internacionalista.
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