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sábado, 7 de março de 2009

CINCO REFORMAS POLÍTICAS RADICAIS

Paulo Queiroz

http://pauloqueiroz.net/

Passados vinte anos da promulgação da Constituição Federal, submetida a dezenas de emendas, convém repensar o sentido e atribuições de algumas instituições, mesmo porque a edição de uma Constituição democrática não implica, necessariamente, a realização de um direito democrático, afinal o mapa não é o território, o discurso a prática, nem a lei o direito. Além do mais, pouco adianta mudar a Constituição se mantivermos as mesmas instituições exatamente como sempre foram. Finalmente, a questão fundamental não reside em mudar a Constituição, e sim o modo de pensar daqueles que a realizam, pois o direito (constitucional) não está nos fatos, nem nas normas, mas na cabeça das pessoas. Porque o direito é o que dizemos que ele é, afinal, não é a interpretação que depende do direito, mas justamente o contrário: é o direito que depende da interpretação.1

1)Extinção do Senado Federal

Uma reforma política que não seja simples estratégia para manter as coisas como estão, criando uma falsa impressão de mudança e perpetuando privilégios por meio de concessões meramente paliativas ou simbólicas, deve começar pela extinção pura e simples do Senado Federal.

Inicialmente porque há muito cessaram as razões históricas que supostamente o justificariam; com efeito, e conforme assinala José Afonso da Silva, o argumento da representação dos Estados pelo Senado, que se fundava na idéia, inicialmente implantada nos EUA, de que se formava de delegados próprios de cada Estado, pelos quais estes participavam das decisões federais, há tempo não existe nos EUA e jamais existiu no Brasil, porque os Senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os Deputados, por via de partidos políticos, motivo pelo qual os Senadores integram a representação dos partidos tanto quanto os Deputados e dá-se o caso não raro de os Senadores de um Estado serem de partido adversário do Governador, daí defenderem programa diverso deste (Curso de Direito Constitucional Positivo. S. Paulo: Malheiros, 2001, p. 513).

Também porque a competência dessas casas para legislar é essencialmente a mesma (CF, arts. 48 e 49), sendo que a competência privativa do Senado (CF, art.52) poderia ser perfeitamente assumida pela Câmara Federal sem prejuízo algum ao sistema que se pretende democrático de direito. Mais: apesar de a retórica constitucional dizer que os Deputados são “representantes do povo” e os Senadores “representantes dos Estados e do Distrito Federal” (CF, arts. 45 e 46), fato é que o critério de escolha de seus representantes é rigorosamente o mesmo, o voto popular, razão pela qual afirmá-lo constitui mero jogo de palavras. Aliás, eleitos que são essencialmente segundo os mesmos critérios, segue-se que uma casa legislativa acaba sendo uma inútil duplicada da outra (Hans Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado. S. Paulo: Martins Fontes, 2000, p.426).

Além disso, malgrado sejam eleitos pelo povo, o tratamento constitucional dispensado a Deputados e Senadores é duplamente desigual: primeiro, porque os membros do Senado têm mandato de oito anos, o dobro dos membros da Câmara; segundo, porque o voto de 81 Senadores vale tanto quanto o de 513 Deputados, estando o poder de decisão desigualmente distribuído, portanto. Não sem razão, Hans Kelsen afirmava que o sistema unicameral era bem mais condizente com a idéia de democracia, porque o sistema bicameral, típico de monarquia constitucional e do Estado federal, é sempre uma atenuação do princípio democrático (Teoria Geral do Direito e do Estado. S. Paulo: Martins Fontes, 2000, p.426).

Não bastasse isso, historicamente quem de fato legisla e tem legislado no Brasil é o Poder Executivo, por meio de decretos, medidas provisórias etc., circunstância que, embora criticável, não pode ser ignorada. Aliás, parte desse desprestígio (frente ao Executivo) do Poder Legislativo deve-se à lentidão com que são ordinariamente apreciados e votados os projetos de lei, em virtude inclusive das idas e vindas dos projetos entre as duas casas legislativas.

Finalmente, abolido o Senado, instituído o sistema unicameral, dar-se-ia maior presteza ao processo legislativo, diminuindo sensivelmente a burocracia do legislativo, sintonizando-o melhor com as permanentes mudanças dos dias atuais; evitar-se-ia ainda a edição de leis já ultrapassadas quando de sua promulgação (Códigos Penais, Civis etc.), tal a demora na tramitação dos projetos. Mais: economizar-se-iam nada menos que R$ 2,4 bilhões anuais, que é o custo (estimado) do Senado para os cofres públicos, sendo seus servidores aproveitados noutras instituições.

Por último, a alegada função revisora que justificaria a existência da instituição poderá ser perfeitamente cumprida pela própria Câmara Federal, inclusive, quando necessário, por meio de votação em dois turnos. Mais: papel semelhante pode e tem sido cumprido por juízes e tribunais através do controle (incidental e direto) da constitucionalidade das leis.

Manter o Senado traduz, por conseguinte, mero respeito à tradição, luxo por demais caro para um país tão profundamente desigual e pobre como o Brasil.

2) Extinção do foro privilegiado

Apesar de o foro privilegiado ter fundamentos jurídicos até razoáveis, a sua motivação é claramente política e traduz um modo particular de legislar em causa própria, sendo de todo incompatível com um sistema que se pretende democrático de direito, que tem o princípio da igualdade de todos perante a lei como um de seu pilares. Não é de estranhar, por isso, que o parlamento (PEC 358/05) pretenda ampliá-lo, estendendo-o também a ex-ocupantes de cargos políticos importantes: governadores, parlamentares, prefeitos etc., motivo pelo qual somente poderiam ser julgados penalmente pelos tribunais. A razão de uma tal preferência é evidente: não dispondo os tribunais (ordinariamente) de estrutura adequada para fazer face a tal demanda, os processos criminais instaurados contra tais pessoas muito provavelmente prescreverão, deixando-os impunes.

Na prática, pois, ampliar o foro privilegiado é assegurar a impunidade de potenciais criminosos. Sim, porque tivesse o STF (por exemplo) um histórico de punir criminosos do poder implacavelmente, por certo que interesse algum haveria em postular algo assim, mesmo porque em tese o foro privilegiado é menos garantista e prejudicial ao réu, pois pode inclusive implicar a possibilidade de ser julgado por uma única instância (STF), abrindo-se mão de uma dezena de recursos possíveis caso fosse julgado por um juiz singular.

O parlamento prestaria em verdade um grande serviço ao país se, ao invés de ampliar o foro privilegiado, fizesse exatamente o contrário: abolisse por completo toda sorte de prerrogativa de foro, afinal quanto mais importante é o cargo que se exerce tanto maior há de ser a responsabilidade do seu ocupante, que deve ser julgado como qualquer outro acusado, sem nenhum tipo de privilégio, embora conforme as garantias de um processo penal democrático. Aliás, se tais agentes políticos são julgados, nas ações cíveis, trabalhistas etc., perante os juízes comuns, que razão haveria para que não se fizesse o mesmo também quanto às ações penais?

É comum se dizer que os juízes de primeiro grau são muito jovens e por isso não estariam em condições de julgar de modo imparcial tais autoridades, mas semelhante argumento é inconsistente, porque, se assim for, então será o caso de não poderem julgar ninguém mais, inclusive as autoridades que não detêm foro privilegiado (policiais, agentes da Receita, do Banco Central, defensores públicos, vereadores etc.). Além disso, se a alegada falta de isenção for fundada, a lei poderá estabelecer que só os juízes com determinado tempo de magistratura (digamos, 10 anos) tenham competência para decidir tais causas. Mais: eventuais abusos sempre podem ser corrigidos por meio de recurso para os tribunais e argüições de impedimento ou suspeição. Por fim, não parece certo que os tribunais sejam menos vulneráveis ou mais isentos, especialmente porque seus membros são, não infreqüentemente, indicados segundo critérios políticos por excelência. Há quem afirme, inclusive, que a confiança que se deve depositar no poder judiciário brasileiro é inversamente proporcional à sua hierarquia (Celso Antônio Bandeira de Mello).

Por tudo isso, é de se lamentar que num momento em que a imprensa de um modo geral clama por mais repressão, ao menos quanto à criminalidade de rua, notadamente crimes contra o patrimônio (furto, roubo, latrocínio), típica de sujeitos socialmente excluídos, tente o congresso ampliar a prerrogativa de foro. Aliás, a ambigüidade como a questão penal é tratada pelo parlamento demonstra a pouca seriedade como realmente é enfocada: criminosos são sempre os outros.

No fundo o foro privilegiado é apenas mais um dispositivo de poder destinado a perpetuar a arbitrária seletividade do sistema penal, que recruta sua clientela preferencialmente entre os grupos sociais mais vulneráveis política e economicamente: la justicia penal es como las serpientes; solo pica a los descalzos (Monsenhor Oscar Romero).

3)Extinção dos tribunais superiores

A Constituição Federal (art. 5º, LVII) assegura a todos, inocentes e não inocentes, criminosos e não criminosos, o direito de não serem considerados (juridicamente) culpados “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e que é preciso respeitar as regras do jogo democrático e combater as várias formas possíveis de trapaça.

A lei é, pois, claríssima: enquanto o réu, ainda que eventualmente confesso, responder a inquérito/ação penal ou puder recorrer da sentença condenatória, é, do ponto de vista estritamente jurídico, não culpado, até porque é sempre possível reconhecer em seu favor excludentes de ilicitude (v.g., legítima defesa), de culpabilidade (v.g., coação moral irresistível) ou causa extintiva da punibilidade (v.g., prescrição) etc., por mais improvável. É preciso distinguir assim o culpado de fato (v.g., réu confesso) do culpado de direito, isto é, réu já condenado definitivamente.

Portanto, tanto a polícia que prende o réu quanto o juiz que o solta antes da condenação final agem em tese conforme a lei, mesmo porque o juiz não é um agente da segurança pública, mas um garantidor dos direitos fundamentais.

Contra esse estado de coisas, é comum dizer-se que, caso não se prenda e se mantenha o réu preso desde logo, dificilmente alguém será preso, dada a quantidade de recursos manejáveis, pretendendo-se assim legitimar constrangimentos ilegais por motivos pragmáticos. Também não é infreqüente afirmar que alguns recursos devem ser abolidos ou que se deve restringir, grandemente, a possibilidade de sua interposição junto aos tribunais, como agora se fará quanto ao recurso especial para o STJ.

Mas ninguém diz que há excesso de recursos porque há excesso de tribunais e que extinguir tais tribunais significaria extinguir os respectivos recursos, economizar dinheiro público e imprimir maior celeridade aos feitos, em conformidade com o princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5°). Mais: o que se deve assegurar, de um modo geral, às partes, nos processos cíveis e criminais, é o duplo grau de jurisdição, isto é, a possibilidade de reexame da causa por uma instância revisora superior, e de acordo com as garantias de um processo democrático, e não um triplo grau de jurisdição ou algo similar. E o mais importante na administração da justiça não é criar/manter mais tribunais, mas democratizar o acesso à justiça, permitindo-se, por meio do fortalecimento das defensorias públicas inclusive, que todos, pobres e ricos, possam ter fácil acesso ao judiciário. Entre nós, há tribunais de mais e justiça de menos.

A questão fundamental não reside, portanto, em prender (provisória e por vezes ilegalmente) pessoas que respondam a uma ação penal, nem abolir as garantias constitucionais, próprias de um Estado de Direito, mas em ampliar as vias de acesso ao judiciário, democratizando-o tanto quanto possível. Por isso, ou também por isso, urge extinguir os Tribunais Superiores (STJ, STM, TSE, TST etc.), mesmo porque quantidade, na administração da justiça inclusive, não significa mais qualidade, nem mais justiça, e sim perda de tempo e desperdício de dinheiro público. Problemas estruturais demandam soluções também estruturais. E quanto menos Estado (burocrático) melhor.

4)Subordinação da polícia ao Ministério Público

Suponha que alguém tenha cometido um delito grave, mas, estranhamente, detenha o poder de designar e/ou supervisionar a autoridade que irá investigá-lo, de modo que ao delinqüente pertence, em última análise, o comando final da sua própria investigação. É evidente que isso é um total absurdo, uma farsa.

Mas é exatamente isso que ocorre entre nós no âmbito das investigações policiais destinadas a apurar a criminalidade do poder. Com efeito, compete a um servidor público hierarquicamente inferior (Delegado de Polícia ou Delegado Federal) investigar crimes praticados por seus superiores hierárquicos (Presidentes, Ministros, Governadores, Secretários de Estado) ou autoridades de que dependem, direta ou indiretamente, como Deputados Federais/Estaduais e Prefeitos municipais. Ou seja: as chamadas autoridades de alto escalão acabam por investigar a si mesmos por meio da designação e/ou monitoramento dos seus investigadores. Dito de outro modo: no modelo policial brasileiro, os investigados/criminosos detêm o controle político das investigações, apesar de não as presidirem formalmente.

Ora, é evidente que, em que pesem a competência e boa fé da grande maioria, não cabe esperar de um Delegado de Polícia, que pretende fazer carreira, obter promoções, remoções etc., e também parecer bem aos olhos de seus superiores, que investigue de forma isenta infrações cometidas por aqueles de que dependem hierarquicamente (salvo em casos excepcionais e insignificantes), até porque os eventuais implicados poderão afastá-los a todo tempo. Cuida-se, portanto, de uma investigação comprometida desde a sua concepção, isto é, estruturalmente viciada, podendo pretextar a perseguição de adversários políticos inclusive.

E manter uma estrutura policial que dependa hierárquica e diretamente do poder executivo, além de implicar uma clara subversão da lógica das investigações, constitui uma manobra para acobertar possíveis crimes de certas autoridades e assim lhes assegurar a impunidade. Quanto ao inquérito do “mensalão”, exceção à regra, caberia lembrar que, além da extraordinária repercussão na imprensa, nele interveio o Ministério Público desde o primeiro momento, o que nem sempre ocorre.

Não é de surpreender, por isso, a descoberta na Bahia de mais de 300 (trezentos) procedimentos e inquéritos policiais envolvendo cerca de 30% dos 417 municípios baianos, que dizem respeito a prefeitos, vice-prefeitos e ex-prefeitos (Cf. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de 2008), sobre homicídio inclusive, os quais estavam “esquecidos” numa sala da Secretaria de Segurança Pública desde 1988, todos fadados ao reconhecimento inevitável da prescrição e, pois, à impunidade dos criminosos.

O pior é que o ocorrido na Bahia é o que se passa em todo o Brasil ordinariamente, se bem que a estratégia do “esquecimento” costuma assumir forma mais sutil, pois mais freqüentemente os inquéritos policiais, quando efetivamente instaurados, se arrastam anos a fio por meio de pedidos sucessivos de dilação de prazo; e quando chegam a ser concluídos, não são realizadas a tempo e modo as diligências indispensáveis e colhidas as provas necessárias à penalização dos responsáveis. A isso se soma ainda a costumeira morosidade dos tribunais de contas.

Por essas e outras é que ainda hoje a polícia judiciária brasileira se limita a apurar, quase que exclusivamente, crimes patrimoniais e similares (estelionato, furto, roubo), típica criminalidade dos grupos socialmente excluídos, e, pois, mais economicamente vulneráveis, deixando impune a criminalidade do poder, apesar de bem mais danosa, a exigir o quanto antes a sua reestruturação, quer autonomizando-a relativamente ao poder executivo, quer (mais adequadamente) fazendo integrar instituição independente a que está vinculada finalisticamente: o Ministério Público.

5)Crítica à intervenção do Ministério Público em segundo grau

Como é sabido, as atribuições do Ministério Público, embora múltiplas, estão sintetizadas no artigo 127 da Constituição Federal, as quais consistem na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, competindo-lhe, dentre outras funções específicas, promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129, I).

Pois bem, questão que merece alguma reflexão diz respeito à legitimidade/necessidade da intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais públicas propostas perante o juízo de primeira instância e submetidas à apreciação dos tribunais mediante recurso.

Em favor da legitimidade da intervenção ministerial, é comum afirmar que o Procurador Regional da República (Sub-Procurador Geral ou Procurador de Justiça), diversamente do que ocorre na primeira instância, atua na condição de fiscal da lei ou “custos legis”, de sorte que a legitimidade dessa segunda intervenção se funda no argumento de que, embora pertencentes à mesma instituição, seus membros desempenham papeis distintos: um como parte (autor) da ação penal; outro, como fiscal da lei.

Nem todos estão de acordo com isso, evidentemente. Paulo Jacobina, por exemplo, afirma que não é possível distinguir entre parte e fiscal da lei, porque, quando o Ministério Público é parte, é fiscal da lei, e quando é fiscal da lei, é parte2, pois, mesmo quando se manifesta nos processos que envolvem interesses individuais indisponíveis, como interveniente, o Ministério Público é a um tempo fiscal da lei e parte, podendo requerer a produção de prova, recorrer, agir com todos os ônus e privilégios das partes, conforme dispõe o art. 83 do CPC3. Apesar disso, distingue entre parte autora, que, na ação penal pública, é exercida pelo órgão que atua na primeira instância (com exceção das ações penais originárias), e parte interveniente, atribuição que compete ao Procurador de segunda instância, distinção que legitimaria a intervenção do órgão em segundo grau nas ações penais públicas, de sorte que, embora alterada a terminologia, as coisas permanecem, no essencial, como estavam.

Elmir Duclerc entende, com base nos princípios do devido processo legal e sistema acusatório, e por ser o Ministério Público, nas ações penais públicas, parte autora, que o parecer apresentado em segunda instância não tem qualquer sentido, devendo o Procurador, quando muito, sustentar oralmente o recurso ministerial (ou dele divergir) no mesmo prazo da defesa e, eventualmente, interpor recursos contra o acórdão, quando dele discordar4.

Já Rogério Schietti considera superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério consulente (fiscal), eis que, na ação penal pública, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro da instituição, ela estará sempre presente. Assinala ainda que o parecer do Ministério Público em segundo grau, que mais atende à tradição do que ao sistema acusatório, não é obrigatório, mas facultativo, devendo sobre ele se manifestar a defesa, a fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa5. No mesmo sentido, Frederico Marques e Fernando da Costa Tourinho6.

Temos que realmente o Ministério Público, nas ações penais públicas, é sempre autor (titular) da ação, independentemente da instância em que autuem seus órgãos, e essa condição (parte autora) permanece absolutamente inalterada pela circunstância de intervir em segunda instância um outro membro da instituição (Procurador Regional, Procurador de Justiça etc.). Além isso, a função constitucional de ambos os representantes é rigorosamente a mesma: defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127), não importando a que título intervenha. Afinal, o Procurador-Geral da República, os Sub-Procuradores Gerais da República, os Procuradores Regionais e Procuradores da República são o próprio Ministério Público, e não instituições distintas.

Não é preciso dizer que, independentemente da distinção entre autor e fiscal, o órgão do Ministério Público poderá sempre pleitear a condenação ou a absolvição, rever posicionamentos próprios ou alheios, recorrer etc., uma vez que aqueles que o representam não são órgãos da acusação, mas órgãos legitimadas para acusar7; afinal, há muito está superada a figura do Procurador/Promotor implacável que persegue condenações a qualquer custo e que contabiliza as absolvições como derrotas e as condenações como vitórias8.

O mais importante reside, porém, no seguinte: a distinção entre autor e fiscal da lei, apesar de tradicional e recorrente, é infundada, porque pressupõe dualidade onde existe ou deve existir unidade. Com efeito, por ser instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (CF, art. 127), sua missão constitucional, em todos os processos em que intervém, é sempre a mesma, independentemente de quem a represente (Promotor, Procurador etc.) e da entidade ou grau de jurisdição (juízo, tribunal, conselhos etc.) em que atue. Além disso, por ser a instituição una/indivisível, não parece razoável que possa se fazer representar, autonomamente, por mais de um membro num só e mesmo processo, não raro para repisar os mesmos argumentos. Aliás, exatamente por isso, ninguém propõe que, na primeira instância ou nas ações penais originárias, atuem dois Promotores/Procuradores, um como autor da ação penal, outro como fiscal da lei.

Essa situação (duas ou mais intervenções) é ainda mais incompreensível quando, nas apelações criminais, o apelante, valendo-se do disposto no art. 600, §4º, do Código de Processo, apresenta razões em segundo grau, quando é então designado um Procurador Regional para apresentar contra-razões e outro para atuar como fiscal da lei, como se representassem instituições distintas ou cumprissem funções institucionais diversas.

Dir-se-á que a situação na segunda instância é diferente: o Procurador Regional da República (ou Procurador de Justiça) não ofereceu denúncia, não participou da instrução etc., e, por isso, exerceria semelhante munus mais isentamente. No entanto, a tese, além de questionável, dada a tendência natural de o colega de segunda instância se solidarizar com o de primeira, inclusive em razão da unidade da instituição, não justificaria, por si só, a intervenção em segundo grau, mesmo porque o dever de imparcialidade é comum a todos os seus membros, motivo pelo qual são passíveis de argüição de suspeição e impedimento (CPP, art. 104 e 112). Mais: a maior ou menor isenção é um atributo personalíssimo, que, como tal, varia de pessoa a pessoa, independentemente da posição em que é chamado a atuar.

Enfim, nas ações penais públicas, o Ministério Público é sempre titular da ação – logo, parte, obviamente9 -, não cabendo falar de fiscal da lei, interveniente ou similar10, ao menos como pretexto para justificar posição processual autônoma, até porque a expressão “fiscal da lei”, que deve ser entendida como “fiscal da Constituição”, constitui expressão das mais vagas e que remete, em verdade, às próprias funções constitucionais e legais da instituição, e encerra, em última análise, uma tautologia11. Mais: o vocábulo “fiscal da lei” (generalíssimo), que é também sinônimo de controle de legalidade, notadamente da legalidade constitucional, constitui função de praticamente todos os órgãos do Estado e da administração pública, apesar da diversidade de competências: Congresso Nacional, Judiciário, Tribunais de Contas, Fazenda Nacional, Polícias etc.

Também por isso, é irrelevante a distinção – que não é de natureza constitucional, mas processual - entre parte e fiscal da lei, porque, ainda que eventualmente não seja parte num determinado processo, o Ministério Público é sempre fiscal do ordenamento jurídico, motivo pelo qual a sua intervenção judicial ou administrativa sempre terá essa qualidade como pressuposto lógico inevitável. Quando em juízo, ser fiscal da lei e ser parte significam uma só e mesma coisa: o Ministério Público quando é fiscal da lei, é parte; quando é parte, é fiscal da lei, ou seja, fiscal da Constituição12.

Por tudo isso é que parece insustentável a intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais apenas como “custos legis”, posição inclusive que não raro ofende o contraditório e a amplitude da defesa13. No futuro a atuação do MP como parecerista deve ser abolida, se é que de fato foi recepcionada pela Constituição.

Por essas e outras, temos que já é tempo de se iniciar amplo debate sobre a necessidade urgente de revisão de toda a estrutura funcional do Ministério Público, a fim de tornar a sua atuação mais racional e eficiente

Porque a história do Ministério Público é a história do Estado, um largo caminho de democratização, que só estamos iniciando, e que por isso requer uma constante revisão crítica e que implica, ao menos tempo, remover, permanentemente, mitos, ficções e alienações que impeçam essa revisão14.


1Paulo Queiroz. Direito Penal. Parte Geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição.

2Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.

3Paulo Jacobina. Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.

4Curso de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2007.

5Garantias Processuais nos Recursos Criminais. S. Paulo: Atlas, 2002, p. 91/94.

6Que escrevem, respectivamente: “o procurador-geral deve ter vista dos autos, não para neles oficiar, e sim para tomar conhecimento da causa e acompanhar seus trâmites no juízo ad quem. Abre-se-lhe vista para que verifique se deve fazer sustentação oral da acusação, colocar-se a par das questões debatidas no recurso e, se requerer intervenção nos debates orais do processo para responder à defesa, encontrar-se apto a propugnar pela condenação do acusado” (José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v.4., p.220). “Embora nunca houvesse feito referência ao assunto, continuo sem entender essa estória de o Ministério Público da segunda instância atuar como custos legis. (…) Pelo princípio do contraditório, a defesa fala por último. Sendo assim, havendo um recurso interposto na primeira instância, o membro do Ministério público que fizer as contra-razões já estará atuando como parte acusadora e como fiscal da lei, ex vi do art. 257 do CCP. Por que a ouvida da Procuradoria como custos legis? A mim me parece que o Ministério Público de segunda instância, nos recursos oriundos do primeiro do primeiro grau, devia manifestar-se apenas sobre o aspecto formal do processo, deixando o mérito para o Tribunal. Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e recursos em sentido estrito deixam entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi cortado…Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser encaminhados à OAB” (Fernando da Costa Tourinho, citado por Rogério Schietti).

7Eugênio Pacelli. Curso de Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del-Rey, 2007.

8Claus Roxin. Posición jurídica y tareas futuras del ministério público. In el Ministerio Público en el Proceso Penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 2000, p. 39.

9De acordo com Fredie Didier, parte processual é quem está na relação jurídica processual, assumindo qualquer das situações jurídicas processuais, atuando com parcialidade e podendo sofrer alguma conseqüência com a decisão final (Curso de Processo Civil. Salvador: juspodium, 2007, p. 196). De modo similar, Guilherme Marinoni: aquele que toma “parte” no litígio, ou dele faz “parte”, deve ser considerado parte; aquele que é estranho ao litígio, ou dele não faz “parte”, embora a sentença contra ele produza efeitos, deve ser considerado terceiro (Curso de Processo Civil. S. Paulo: RT, 2004, p. 117). Nem todos estão de acordo com essa afirmação, de que o Ministério Público é parte. Nesse sentido, Diaulas Costa Ribeiro, para quem, com os deveres institucionais que lhe são inerentes, o Ministério Público não pode ser parte nem estar em situação de igualdade com os advogados de defesa na relação processual (Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. S. Paulo: Saraiva, 2003, p.110). No entanto, as atribuições constitucionais do Ministério Público, embora o coloquem numa situação processual especialíssima, privilegiada, não lhe tiram a condição de parte; antes o confirmam.

10 Temos que só se pode falar de interveniente ou similar nas ações penais de iniciativa privada ou processos cíveis em que o Ministério Público não figure como autor.

11Não por acaso, nalguns países a instituição é chamada Ministério Fiscal ou Fiscalia, e seus membros são denominados Fiscais.

12Como assinalam Nelson Nery e Rosa Nery, qualquer que seja a causa que autorize o Ministério Público a intervir no processo, civil ou penal, o móvel dessa autorização é sempre o interesse público. Não existem dois interesses públicos, mas apenas um, de modo que sempre deverá intervir um representante do Ministério Público no processo civil, ainda que sejam várias as causas que determinaram sua intervenção. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. S. Paulo: RT, 2004.

13Nesse sentido, Natalie Ribeiro Pletsch. Formação da Prova no Jogo Processual Penal. S.Paulo: Ibccrim, 2007. Já Alberto Zacharias Toron propõe que, nas sustentações orais, se o Ministério Público figurar como recorrente, falará em primeiro lugar, falando em seguida a defesa, e não o contrário, como ainda ocorre. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. RT: S. Paulo, 2003, p.91/101.

14Juan Bustos Ramírez. Bases críticas de un nuevo derecho penal. Bogotá Temis, 1982, p. 150

sexta-feira, 6 de março de 2009

PROJETO DE REFORMA DO JUDICIÁRIO

Projeto (imaginário) de Reforma do Poder Judiciário
por Paulo Queiroz*
Considerando que os tribunais superiores fracassaram na missão de uniformizarem a jurisprudência.
Considerando que as leis, por mais claras e precisas, admitem múltiplas formas de interpretação.
Considerando que a quantidade de tribunais não implica necessariamente melhor qualidade da jurisdição.
Considerando a incompatibilidade desses tribunais com o princípio da razoável duração do processo.
Considerando que é assegurado, como regra, apenas o duplo grau de jurisdição, e não um terceiro ou quarto graus de jurisdição.
Considerando que os tribunais superiores oneram excessiva e inutilmente os cofres públicos.
Considerando que o processo não é um fim em si mesmo, mas um meio a serviço de um fim: produzir uma decisão justa ou ao menos conforme as garantias de um Estado Democrático de Direito.
Considerando que a eternização dos processos implica insegurança e descrédito do poder judiciário.
Considerando que o instituto da prerrogativa de foro é incompatível com o princípio da isonomia e fomenta a impunidade.
Considerando a frequência excessiva da prescrição, especialmente em ações penais.
Considerando que problemas estruturais demandam soluções também estruturais.
Submete-se à apreciação a seguinte reforma do poder judiciário:
Art. 1°. São extintos todos os tribunais superiores (STJ, STM, TSE, TST).
Art. 2°. O Supremo Tribunal Federal, cujos membros terão mandato improrrogável de quatro anos, apreciará exclusivamente matéria constitucional (conforme anexo).
Art. 3°. São extintos todos os recursos previstos nos regimentos internos dos tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal.
Art. 4°. Haverá exclusivamente dois recursos: apelação, contra decisões definitivas; e agravo, contra decisões interlocutórias, em ações cíveis e criminais.
Art. 5°. É extinto o recurso de embargo de declaração.
Art. 6°. É extinta a função de juiz (desembargador) revisor.
Art. 7°. São extintas as denominações “desembargador” e “ministro”; os respectivos ocupantes dos cargos chamar-se-ão “juízes”.
Art. 8°. É extinta a prerrogativa de foro para todas as funções e cargos públicos.
Revista Jus Vigilantibus, Domingo, 1º de março de 2009.
*Doutor em Direito (PUC/SP), é Professor Universitário (UniCeub), Procurador Regional da República em Brasília, e autor, entre outros, do livro Direito Penal, parte geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição.

terça-feira, 3 de março de 2009

CNJ conclui pesquisa sobre o Judiciário

Como comento em sala: o Judiciário precisa compreender que o comando constitucional "eficência", postado no art. 37, é-lhe também dirigido
O Judiciário precisa compreender que ele é prestador de serviço, como qualquer outro órgão.
JD

Sob o título "Os juízes e a Justiça", o conselheiro Joaquim Falcão, do Conselho Nacional de Justiça, publicou o seguinte artigo em que trata das pesquisas sobre o Judiciário, das condições de trabalho e das distorções na estrutura e hierarquia desse Poder.
O autor --que prega a necessidade de um "choque de gestão" nos tribunais-- é diretor da Escola de Direito da FGV.
O texto foi publicado originalmente no "Jornal do Comércio", de Pernambuco, e reproduzido no site do CNJ.
A maior e principal associação dos juízes brasieiros, a AMB, contando com mais de dez mil associados e comandada pelo pernambucano Mozart Valadares, acaba de divulgar pesquisa recente, de janeiro de 2009.
Pesquisa que interessa a todos. Nela, os juízes falam de suas condições de trabalho. Três conclusões são inevitáveis.
A primeira é que quanto mais as reivindicações dos juízes forem fundamentadas em dados empíricos e legitimadas pela maior representatividade possível, melhor.
Mais os caminhos da reforma do Judiciário deixarão de ser opções ideologizadas e preferências, certas ou erradas, de poucos.
É preciso que a OAB ouça seus advogados, o Ministério Público ouça seus promotores, as associações dos usuários ouçam as partes. E que a opinião pública também se pronuncie. Assim como os juízes estão se ouvindo.
A efetividade das propostas depende da maior participação de todos. E quem melhor capta a opinião, de pés encharcados no chão, são as pesquisas. E não as doutrinas.
A segunda é que, por mais paradoxal que possa parecer, como disse Mozart Valadares no recente Encontro nacional da magistratura, em Belo Horizonte, os juízes querem conhecer a Justiça. Ou seja, o próprio Judiciário.
A pesquisa é clara: mais de 99% dos juízes de primeira instância não sabem sobre o orçamento dos tribunais. Não sabem nem mesmo dos recursos que dispõem para realizar seus próprios trabalhos em suas varas.
Fica difícil o planejamento estratégico, o combate ao desperdício e o alcance de metas.
Aqui, maior transparência é imperativo constitucional. Na verdade, a atual estrutura do Poder Judiciário é fruto de uma confusão de hierarquias.
A autoridade dos desembargadores é uma autoridade jurisdicional. Suas decisões prevalecem sobre a dos juízes de primeira instância. E isto é fundamental para o Estado Democrático de Direito. Mas o Estado Democrático de Direito não exige, necessariamente, que a autoridade jurisdicional de dizer o direito se traduza em autoridade administrativa de gerenciar tribunais.
A hierarquia jurisdicional não implica, necessariamente, na hierarquia administrativa.
A nova Lei Orgânica da Magistratura vai, com certeza, repensar e desfazer esta confusão.
A terceira conclusão que se pode tirar é que, para usar uma expressão da moda, os tribunais necessitam de um "choque de gestão". O que já está ocorrendo em vários tribunais.
Aliás, a pesquisa mostra como diferem as regiões entre si.
E o desempenho da Justiça do Nordeste é inferior ao desempenho das Justiças do Sul e Sudeste, sobretudo quanto à qualidade do atendimento, da qualificação de funcionários
Não é preciso, por exemplo, construir mais prédios. A estrutura física de trabalho é, no mínimo, regular para 73% dos entrevistados. O Fórum é bem localizado para 91% dos entrevistados. Mas esta satisfatória estrutura física necessita de um repensar: existe mais espaço para processos, para o papel, do que salas de espera para os advogados e o público. Precisa-se de digitalização para desocupar o espaço tomado pelos processos, e não de mais prédios. E precisa-se de formação de pessoal qualificado.
A Justiça em números, estatísticas produzidas pelo CNJ, comandada por Mairan Maia, indicam que não nos faltam servidores. Faltam, em alguns tribunais, mais juízes e menos cargos de confiança. Fica clara, também, uma ainda grave deficiência de informatização dos tribunais e varas.
Cerca de 80% dos juízes não têm sistemas de informação para realizar seus trabalhos. Cerca de 30% ainda usam carimbos. Poucos são os que dispõem de equipamentos necessários à digitalização. Mas, se pudéssemos resumir, uma grande conclusão desta pesquisa é a de que a grande maioria das providências necessárias a uma Justiça mais ágil está claramente nas mãos dos tribunais e dos próprios magistrados.
Os diagnósticos feitos, seja pelo CNJ, pela AMB, seja por especialistas, podem variar um pouco. Mas tudo é uma questão de determinação política por parte das diretorias dos tribunais e mobilização interna convergente para a modernização e maior transparência da gestão.
Por uma Justiça ágil.

domingo, 1 de março de 2009

AINDA SOBRE A LEI SECA

OS ABSTÊMIOS E O BAFÔMETRO

Aldemário Araújo Castro

Abstêmio. Mestre em Direito. Procurador da Fazenda Nacional. Corregedor-Geral da Advocacia da União. Professor da Universidade Católica de Brasília


 

Brasília, 11 de julho de 2008


 

Por força da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, o Código de Trânsito Brasileiro foi modificado para "endurecer" o tratamento dado aos motoristas flagrados ao volante sob a influência de bebidas alcoólicas ou de substâncias psicoativas.

Registre-se que a imprensa, em todas as suas formas de manifestação, tem prestado um relevante serviço à sociedade, notadamente quando dissemina amplamente a política de tolerância zero e ajuda na redução das absurdas estatísticas de mortes no trânsito relacionadas com o consumo de bebidas alcoólicas (1). Por outro lado, a mesma imprensa concorre para criar um ambiente de certa confusão e imprecisão no trato das conseqüências jurídicas das condutas dos motoristas afetados por substâncias proibidas.

A principal mudança introduzida pela aludida lei foi a tolerância zero para o álcool ("alcoolemia zero"). Ocorre que a drástica vedação possui uma importante "gradação".

Com efeito, segundo o novo art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, caracteriza-se como infração administrativa "dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Não há, portanto, qualquer tipo de limite, de tolerância (2).

Nesse sentido, o novo art. 276 do Código consagra expressamente: "qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165". A infração é tida como gravíssima e será punida com multa, suspensão do direito de dirigir por doze meses, recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado.

Já o novo art. 306 do Código, definiu como crime "conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". As penas aplicáveis são: detenção, de seis meses a três anos,

multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Em suma, para o álcool, a concentração inferior a seis decigramas por litro de sangue define uma infração administrativa (3). A concentração igual ou superior a seis decigramas qualifica-se como crime.

Trata-se, nessa última hipótese, de crime de perigo abstrato (inexiste alguém, na condição de vítima, que tenha sofrido ou passado por um risco concreto, determinado) (4).

O Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 277, com redação ofertada pela Lei n. 11.275, de 2006, estabelece que "todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado". A última referência, exatamente aos aparelhos que possam certificar o estado de embriaguez, contempla o

aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), popularmente conhecido como bafômetro.

Seria indiscriminada a utilização do bafômetro? Em especial, os abstêmios ("a pessoa que se abstém do uso de drogas, mais especificamente de bebida alcoólica", no Wikdicionário) serão constrangidos a soprar na "maquininha", em nome de uma presunção de uso indiscriminado de bebidas alcoólicas?

A resposta para as indagações está posta na letra já relativamente antiga do Código de Trânsito Brasileiro. No ponto, o legislador foi sábio. Encontramos a seguinte definição no art. 277 do Código: "sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool".

Assim, o bafômetro somente deverá ser utilizado quando houver suspeita. Não há definição de uso indiscriminado do aparelho.

Suspeita pressupõe um quadro fático tal que justifique a providência.

Suspeitar, no dizer do renomado Dicionário Aurélio, consiste em "julgar com certa base; supor com dados mais ou menos seguros". Em suma, não basta a fiscalização por si só. É preciso que a fiscalização encontre uma situação fática justificadora da medida (utilização do bafômetro).

Portanto, os abstêmios podem ficar tranqüilos ante os dizeres da ordem jurídica. A mesma tranqüilidade não pode ser prescrita ante certos abusos de determinadas autoridades de trânsito imbuídas de um eventual espírito persecutório contra tudo e contra todos.

Subsiste uma questão interessante, sob a ótica jurídica. Qual a conseqüência da recusa em utilizar o bafômetro?

Segundo a lei, mais precisamente o parágrafo terceiro do art. 277, "serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo". Nessa linha, pretende o legislador que a recusa em utilizar o bafômetro seja penalizada.

Tal definição não é aceitável. Afinal, estão fortemente presentes na nossa ordem jurídica, por definição constitucional, os princípios da presunção de inocência e o de que ninguém é obrigado a se autoincriminar.

Se não há obrigatoriedade de adoção de determinada conduta, a recusa em observá-la não pode ser sancionada. Em outras palavras, não é juridicamente possível penalizar aquele que exerce um direito, especialmente um direito de estatura constitucional.

Aliás, muitas vozes abalizadas apontam para uma virtual inaplicação da lei e não-atingimento dos objetivos do legislador, salvo se "... a pessoa que assim desejar ou aquela que for enleada ou mal informada a respeito de seus direitos, e por isso optar por se submeter ou consentir em ser submetida a exames de alcoolemia ou teste do 'bafômetro' ..." (5) (6) (7).

Portanto, são inegavelmente meritórias as motivações do legislador para apartar o álcool (e outras substâncias perigosas) do volante. Entretanto, vislumbram-se significativas dificuldades práticas ou operacionais a serem vivenciadas pela polícia de trânsito.

NOTAS:

(1) "A relação álcool-volante revela facetas cruéis. Em cerca de 75% dos acidentes com vítimas fatais nas ruas e rodovias de nosso país existe um motorista alcoolizado envolvido. O Brasil está no topo da lista de países com maior número de acidentes de trânsito no mundo, com um milhão de acidentes por ano. Resultam daí 300 mil vítimas, 50 mil fatais.

O álcool na corrente sanguínea provoca o afrouxamento da percepção e o retardamento dos reflexos. A dosagem excessiva conduz à perigosa diminuição da percepção e à total lentidão dos reflexos, diminuindo a consciência do perigo. Todo condutor em estado de embriaguez, mesmo leve, compromete sua segurança, a dos demais usuários da via e a dos passageiros que estão apostando suas próprias vidas 100% nas condições deste motorista". Disponível em: <http://www.autoban.com.br/concessionaria/dicas/dicas_detalhes.cfm?objectId=BBD7AF5E-1321-0A9F-1BBABDD454763FE0>. Acesso em: 8 jul. 2008.

"De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 150.000 motoristas dirigem bêbados todos os dias". AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. As modificações no Código de Trânsito Brasileiro e o "déjà vu" automobilístico . JusNavigandi, Teresina, ano 12, n. 1835, 10 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11474>. Acesso em: 10 jul. 2008.


 

(2) Segundo o art. 1o, §1o, do Decreto no 6.488, de 19 de junho de 2008, "as margens de tolerância de álcool no sangue para casos específicos serão definidas em resolução do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, nos termos de proposta formulada pelo Ministro de Estado da Saúde". Ainda segundo o aludido decreto, enquanto não editado o ato de que trata o §1o, a margem de tolerância será de duas decigramas por litro de sangue para todos os casos e quando a aferição da quantidade de álcool no sangue for realizada por meio de bafômetro, a margem de tolerância será de um décimo de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões (§§ 2o e 3o do art. 1o).


 

(3) "Apenas a título de ilustração, seis decigramas equivalem aproximadamente a dois copos médios de cerveja ou a uma dose de bebida destilada para uma pessoa que pesa setenta quilogramas". LATOCHESKI, Luiz Gustavo. Álcool e direção: alguns breves apontamentos sobre as últimas alterações do Código de Trânsito Brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11456>. Acesso em: 7 jul. 2008.


 

(4) "... Porque do contrário estaríamos admitindo o perigo abstrato no Direito penal, o que (hoje) é uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio (constitucional implícito) da ofensividade, que não permite nenhum delito de perigo abstrato (cf. GOMES, L.F. E GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). Todo tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito penal)." GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei n. 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao volante. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11453>. Acesso em: 2

jul. 2008.

(5) MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11454>. Acesso em: 7 jul. 2008.

(6) " ... a lei facilita a vida daqueles que dirigem bêbados. A razão é simples: adotou-se,de forma inédita, um critério matemático para a definição do crime de embriaguez ao volante. E esse critério só pode ser aferido por meio da utilização do etilômetro, popularmente conhecido como bafômetro. Daí, decorrem dois problemas seriíssimos para a efetividade da lei.

Primeiramente, ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo ("privilégio contra a auto-incriminação"). Assim, ao contrário do que tem sido feito, ninguém pode ser compelido a assoprar no bafômetro. Caso a pessoa exerça esse direito e recuse-se a produzir provas contra si mesma, nada poderá ser feito para comprovar a existência daquela quantidade específica de álcool no sangue. Estaria, assim, impossibilitada a condenação. A lei conseguiu produzir a risível situação de que a condenação do réu depende apenas dele mesmo! Atualmente, apenas dois tipos de pessoas submetem-se a esse teste: os desavisados, que não têm conhecimento da existência desse direito, e aqueles que se sentem coagidos pela

polícia. Nas duas situações, a prova será obtida por meios ilícitos e, portanto, de uso vedado no processo penal". AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. As modificações no Código de Trânsito Brasileiro e o "déjà vu" automobilístico . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1835, 10 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11474>. Acesso em: 10 jul. 2008.


 

(7) "É interessante notar que o discurso de rigor do legislador, embora bem aplicado na seara administrativa, não seguiu a mesma senda no âmbito criminal. Afinal de contas, a partir da alteração legal, na verdade, por direção sob efeito de álcool, só é preso em flagrante e, principalmente, condenado, quem quiser!

Como já mencionado, é notório o conhecimento de que ninguém pode ser compelido a produzir prova contra si mesmo. Assim sendo, os exames e testes sobreditos só serão realizados se o suspeito decidir livremente colaborar. Quando ele se negar, a prova será impossível, já que ninguém, nem mesmo um médico ou policial mais experimentado, é capaz de determinar taxas de alcoolemia por meio de um mero exame clínico ou de uma simples passada de olhos sobre o suposto infrator.

Lembremos que a "tolerância zero" e os meios variados de comprovação da infração previstos nos artigos 276 e 277, CTB, referem-se tão somente à infração administrativa do artigo 165, CTB, hoje claramente distinguida pela lei da infração penal do artigo 306 do mesmo diploma". CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre as inovações do Código de Trânsito Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11452>. Acesso em: 10 jul. 2008.