Paulo Queiroz
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Passados vinte anos da promulgação da Constituição Federal, submetida a dezenas de emendas, convém repensar o sentido e atribuições de algumas instituições, mesmo porque a edição de uma Constituição democrática não implica, necessariamente, a realização de um direito democrático, afinal o mapa não é o território, o discurso a prática, nem a lei o direito. Além do mais, pouco adianta mudar a Constituição se mantivermos as mesmas instituições exatamente como sempre foram. Finalmente, a questão fundamental não reside em mudar a Constituição, e sim o modo de pensar daqueles que a realizam, pois o direito (constitucional) não está nos fatos, nem nas normas, mas na cabeça das pessoas. Porque o direito é o que dizemos que ele é, afinal, não é a interpretação que depende do direito, mas justamente o contrário: é o direito que depende da interpretação.1
1)Extinção do Senado Federal
Uma reforma política que não seja simples estratégia para manter as coisas como estão, criando uma falsa impressão de mudança e perpetuando privilégios por meio de concessões meramente paliativas ou simbólicas, deve começar pela extinção pura e simples do Senado Federal.
Inicialmente porque há muito cessaram as razões históricas que supostamente o justificariam; com efeito, e conforme assinala José Afonso da Silva, o argumento da representação dos Estados pelo Senado, que se fundava na idéia, inicialmente implantada nos EUA, de que se formava de delegados próprios de cada Estado, pelos quais estes participavam das decisões federais, há tempo não existe nos EUA e jamais existiu no Brasil, porque os Senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os Deputados, por via de partidos políticos, motivo pelo qual os Senadores integram a representação dos partidos tanto quanto os Deputados e dá-se o caso não raro de os Senadores de um Estado serem de partido adversário do Governador, daí defenderem programa diverso deste (Curso de Direito Constitucional Positivo. S. Paulo: Malheiros, 2001, p. 513).
Também porque a competência dessas casas para legislar é essencialmente a mesma (CF, arts. 48 e 49), sendo que a competência privativa do Senado (CF, art.52) poderia ser perfeitamente assumida pela Câmara Federal sem prejuízo algum ao sistema que se pretende democrático de direito. Mais: apesar de a retórica constitucional dizer que os Deputados são “representantes do povo” e os Senadores “representantes dos Estados e do Distrito Federal” (CF, arts. 45 e 46), fato é que o critério de escolha de seus representantes é rigorosamente o mesmo, o voto popular, razão pela qual afirmá-lo constitui mero jogo de palavras. Aliás, eleitos que são essencialmente segundo os mesmos critérios, segue-se que uma casa legislativa acaba sendo uma inútil duplicada da outra (Hans Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado. S. Paulo: Martins Fontes, 2000, p.426).
Além disso, malgrado sejam eleitos pelo povo, o tratamento constitucional dispensado a Deputados e Senadores é duplamente desigual: primeiro, porque os membros do Senado têm mandato de oito anos, o dobro dos membros da Câmara; segundo, porque o voto de 81 Senadores vale tanto quanto o de 513 Deputados, estando o poder de decisão desigualmente distribuído, portanto. Não sem razão, Hans Kelsen afirmava que o sistema unicameral era bem mais condizente com a idéia de democracia, porque o sistema bicameral, típico de monarquia constitucional e do Estado federal, é sempre uma atenuação do princípio democrático (Teoria Geral do Direito e do Estado. S. Paulo: Martins Fontes, 2000, p.426).
Não bastasse isso, historicamente quem de fato legisla e tem legislado no Brasil é o Poder Executivo, por meio de decretos, medidas provisórias etc., circunstância que, embora criticável, não pode ser ignorada. Aliás, parte desse desprestígio (frente ao Executivo) do Poder Legislativo deve-se à lentidão com que são ordinariamente apreciados e votados os projetos de lei, em virtude inclusive das idas e vindas dos projetos entre as duas casas legislativas.
Finalmente, abolido o Senado, instituído o sistema unicameral, dar-se-ia maior presteza ao processo legislativo, diminuindo sensivelmente a burocracia do legislativo, sintonizando-o melhor com as permanentes mudanças dos dias atuais; evitar-se-ia ainda a edição de leis já ultrapassadas quando de sua promulgação (Códigos Penais, Civis etc.), tal a demora na tramitação dos projetos. Mais: economizar-se-iam nada menos que R$ 2,4 bilhões anuais, que é o custo (estimado) do Senado para os cofres públicos, sendo seus servidores aproveitados noutras instituições.
Por último, a alegada função revisora que justificaria a existência da instituição poderá ser perfeitamente cumprida pela própria Câmara Federal, inclusive, quando necessário, por meio de votação em dois turnos. Mais: papel semelhante pode e tem sido cumprido por juízes e tribunais através do controle (incidental e direto) da constitucionalidade das leis.
Manter o Senado traduz, por conseguinte, mero respeito à tradição, luxo por demais caro para um país tão profundamente desigual e pobre como o Brasil.
2) Extinção do foro privilegiado
Apesar de o foro privilegiado ter fundamentos jurídicos até razoáveis, a sua motivação é claramente política e traduz um modo particular de legislar em causa própria, sendo de todo incompatível com um sistema que se pretende democrático de direito, que tem o princípio da igualdade de todos perante a lei como um de seu pilares. Não é de estranhar, por isso, que o parlamento (PEC 358/05) pretenda ampliá-lo, estendendo-o também a ex-ocupantes de cargos políticos importantes: governadores, parlamentares, prefeitos etc., motivo pelo qual somente poderiam ser julgados penalmente pelos tribunais. A razão de uma tal preferência é evidente: não dispondo os tribunais (ordinariamente) de estrutura adequada para fazer face a tal demanda, os processos criminais instaurados contra tais pessoas muito provavelmente prescreverão, deixando-os impunes.
Na prática, pois, ampliar o foro privilegiado é assegurar a impunidade de potenciais criminosos. Sim, porque tivesse o STF (por exemplo) um histórico de punir criminosos do poder implacavelmente, por certo que interesse algum haveria em postular algo assim, mesmo porque em tese o foro privilegiado é menos garantista e prejudicial ao réu, pois pode inclusive implicar a possibilidade de ser julgado por uma única instância (STF), abrindo-se mão de uma dezena de recursos possíveis caso fosse julgado por um juiz singular.
O parlamento prestaria em verdade um grande serviço ao país se, ao invés de ampliar o foro privilegiado, fizesse exatamente o contrário: abolisse por completo toda sorte de prerrogativa de foro, afinal quanto mais importante é o cargo que se exerce tanto maior há de ser a responsabilidade do seu ocupante, que deve ser julgado como qualquer outro acusado, sem nenhum tipo de privilégio, embora conforme as garantias de um processo penal democrático. Aliás, se tais agentes políticos são julgados, nas ações cíveis, trabalhistas etc., perante os juízes comuns, que razão haveria para que não se fizesse o mesmo também quanto às ações penais?
É comum se dizer que os juízes de primeiro grau são muito jovens e por isso não estariam em condições de julgar de modo imparcial tais autoridades, mas semelhante argumento é inconsistente, porque, se assim for, então será o caso de não poderem julgar ninguém mais, inclusive as autoridades que não detêm foro privilegiado (policiais, agentes da Receita, do Banco Central, defensores públicos, vereadores etc.). Além disso, se a alegada falta de isenção for fundada, a lei poderá estabelecer que só os juízes com determinado tempo de magistratura (digamos, 10 anos) tenham competência para decidir tais causas. Mais: eventuais abusos sempre podem ser corrigidos por meio de recurso para os tribunais e argüições de impedimento ou suspeição. Por fim, não parece certo que os tribunais sejam menos vulneráveis ou mais isentos, especialmente porque seus membros são, não infreqüentemente, indicados segundo critérios políticos por excelência. Há quem afirme, inclusive, que a confiança que se deve depositar no poder judiciário brasileiro é inversamente proporcional à sua hierarquia (Celso Antônio Bandeira de Mello).
Por tudo isso, é de se lamentar que num momento em que a imprensa de um modo geral clama por mais repressão, ao menos quanto à criminalidade de rua, notadamente crimes contra o patrimônio (furto, roubo, latrocínio), típica de sujeitos socialmente excluídos, tente o congresso ampliar a prerrogativa de foro. Aliás, a ambigüidade como a questão penal é tratada pelo parlamento demonstra a pouca seriedade como realmente é enfocada: criminosos são sempre os outros.
No fundo o foro privilegiado é apenas mais um dispositivo de poder destinado a perpetuar a arbitrária seletividade do sistema penal, que recruta sua clientela preferencialmente entre os grupos sociais mais vulneráveis política e economicamente: la justicia penal es como las serpientes; solo pica a los descalzos (Monsenhor Oscar Romero).
3)Extinção dos tribunais superiores
A Constituição Federal (art. 5º, LVII) assegura a todos, inocentes e não inocentes, criminosos e não criminosos, o direito de não serem considerados (juridicamente) culpados “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e que é preciso respeitar as regras do jogo democrático e combater as várias formas possíveis de trapaça.
A lei é, pois, claríssima: enquanto o réu, ainda que eventualmente confesso, responder a inquérito/ação penal ou puder recorrer da sentença condenatória, é, do ponto de vista estritamente jurídico, não culpado, até porque é sempre possível reconhecer em seu favor excludentes de ilicitude (v.g., legítima defesa), de culpabilidade (v.g., coação moral irresistível) ou causa extintiva da punibilidade (v.g., prescrição) etc., por mais improvável. É preciso distinguir assim o culpado de fato (v.g., réu confesso) do culpado de direito, isto é, réu já condenado definitivamente.
Portanto, tanto a polícia que prende o réu quanto o juiz que o solta antes da condenação final agem em tese conforme a lei, mesmo porque o juiz não é um agente da segurança pública, mas um garantidor dos direitos fundamentais.
Contra esse estado de coisas, é comum dizer-se que, caso não se prenda e se mantenha o réu preso desde logo, dificilmente alguém será preso, dada a quantidade de recursos manejáveis, pretendendo-se assim legitimar constrangimentos ilegais por motivos pragmáticos. Também não é infreqüente afirmar que alguns recursos devem ser abolidos ou que se deve restringir, grandemente, a possibilidade de sua interposição junto aos tribunais, como agora se fará quanto ao recurso especial para o STJ.
Mas ninguém diz que há excesso de recursos porque há excesso de tribunais e que extinguir tais tribunais significaria extinguir os respectivos recursos, economizar dinheiro público e imprimir maior celeridade aos feitos, em conformidade com o princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5°). Mais: o que se deve assegurar, de um modo geral, às partes, nos processos cíveis e criminais, é o duplo grau de jurisdição, isto é, a possibilidade de reexame da causa por uma instância revisora superior, e de acordo com as garantias de um processo democrático, e não um triplo grau de jurisdição ou algo similar. E o mais importante na administração da justiça não é criar/manter mais tribunais, mas democratizar o acesso à justiça, permitindo-se, por meio do fortalecimento das defensorias públicas inclusive, que todos, pobres e ricos, possam ter fácil acesso ao judiciário. Entre nós, há tribunais de mais e justiça de menos.
A questão fundamental não reside, portanto, em prender (provisória e por vezes ilegalmente) pessoas que respondam a uma ação penal, nem abolir as garantias constitucionais, próprias de um Estado de Direito, mas em ampliar as vias de acesso ao judiciário, democratizando-o tanto quanto possível. Por isso, ou também por isso, urge extinguir os Tribunais Superiores (STJ, STM, TSE, TST etc.), mesmo porque quantidade, na administração da justiça inclusive, não significa mais qualidade, nem mais justiça, e sim perda de tempo e desperdício de dinheiro público. Problemas estruturais demandam soluções também estruturais. E quanto menos Estado (burocrático) melhor.
4)Subordinação da polícia ao Ministério Público
Suponha que alguém tenha cometido um delito grave, mas, estranhamente, detenha o poder de designar e/ou supervisionar a autoridade que irá investigá-lo, de modo que ao delinqüente pertence, em última análise, o comando final da sua própria investigação. É evidente que isso é um total absurdo, uma farsa.
Mas é exatamente isso que ocorre entre nós no âmbito das investigações policiais destinadas a apurar a criminalidade do poder. Com efeito, compete a um servidor público hierarquicamente inferior (Delegado de Polícia ou Delegado Federal) investigar crimes praticados por seus superiores hierárquicos (Presidentes, Ministros, Governadores, Secretários de Estado) ou autoridades de que dependem, direta ou indiretamente, como Deputados Federais/Estaduais e Prefeitos municipais. Ou seja: as chamadas autoridades de alto escalão acabam por investigar a si mesmos por meio da designação e/ou monitoramento dos seus investigadores. Dito de outro modo: no modelo policial brasileiro, os investigados/criminosos detêm o controle político das investigações, apesar de não as presidirem formalmente.
Ora, é evidente que, em que pesem a competência e boa fé da grande maioria, não cabe esperar de um Delegado de Polícia, que pretende fazer carreira, obter promoções, remoções etc., e também parecer bem aos olhos de seus superiores, que investigue de forma isenta infrações cometidas por aqueles de que dependem hierarquicamente (salvo em casos excepcionais e insignificantes), até porque os eventuais implicados poderão afastá-los a todo tempo. Cuida-se, portanto, de uma investigação comprometida desde a sua concepção, isto é, estruturalmente viciada, podendo pretextar a perseguição de adversários políticos inclusive.
E manter uma estrutura policial que dependa hierárquica e diretamente do poder executivo, além de implicar uma clara subversão da lógica das investigações, constitui uma manobra para acobertar possíveis crimes de certas autoridades e assim lhes assegurar a impunidade. Quanto ao inquérito do “mensalão”, exceção à regra, caberia lembrar que, além da extraordinária repercussão na imprensa, nele interveio o Ministério Público desde o primeiro momento, o que nem sempre ocorre.
Não é de surpreender, por isso, a descoberta na Bahia de mais de 300 (trezentos) procedimentos e inquéritos policiais envolvendo cerca de 30% dos 417 municípios baianos, que dizem respeito a prefeitos, vice-prefeitos e ex-prefeitos (Cf. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de 2008), sobre homicídio inclusive, os quais estavam “esquecidos” numa sala da Secretaria de Segurança Pública desde 1988, todos fadados ao reconhecimento inevitável da prescrição e, pois, à impunidade dos criminosos.
O pior é que o ocorrido na Bahia é o que se passa em todo o Brasil ordinariamente, se bem que a estratégia do “esquecimento” costuma assumir forma mais sutil, pois mais freqüentemente os inquéritos policiais, quando efetivamente instaurados, se arrastam anos a fio por meio de pedidos sucessivos de dilação de prazo; e quando chegam a ser concluídos, não são realizadas a tempo e modo as diligências indispensáveis e colhidas as provas necessárias à penalização dos responsáveis. A isso se soma ainda a costumeira morosidade dos tribunais de contas.
Por essas e outras é que ainda hoje a polícia judiciária brasileira se limita a apurar, quase que exclusivamente, crimes patrimoniais e similares (estelionato, furto, roubo), típica criminalidade dos grupos socialmente excluídos, e, pois, mais economicamente vulneráveis, deixando impune a criminalidade do poder, apesar de bem mais danosa, a exigir o quanto antes a sua reestruturação, quer autonomizando-a relativamente ao poder executivo, quer (mais adequadamente) fazendo integrar instituição independente a que está vinculada finalisticamente: o Ministério Público.
5)Crítica à intervenção do Ministério Público em segundo grau
Como é sabido, as atribuições do Ministério Público, embora múltiplas, estão sintetizadas no artigo 127 da Constituição Federal, as quais consistem na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, competindo-lhe, dentre outras funções específicas, promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129, I).
Pois bem, questão que merece alguma reflexão diz respeito à legitimidade/necessidade da intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais públicas propostas perante o juízo de primeira instância e submetidas à apreciação dos tribunais mediante recurso.
Em favor da legitimidade da intervenção ministerial, é comum afirmar que o Procurador Regional da República (Sub-Procurador Geral ou Procurador de Justiça), diversamente do que ocorre na primeira instância, atua na condição de fiscal da lei ou “custos legis”, de sorte que a legitimidade dessa segunda intervenção se funda no argumento de que, embora pertencentes à mesma instituição, seus membros desempenham papeis distintos: um como parte (autor) da ação penal; outro, como fiscal da lei.
Nem todos estão de acordo com isso, evidentemente. Paulo Jacobina, por exemplo, afirma que não é possível distinguir entre parte e fiscal da lei, porque, quando o Ministério Público é parte, é fiscal da lei, e quando é fiscal da lei, é parte2, pois, mesmo quando se manifesta nos processos que envolvem interesses individuais indisponíveis, como interveniente, o Ministério Público é a um tempo fiscal da lei e parte, podendo requerer a produção de prova, recorrer, agir com todos os ônus e privilégios das partes, conforme dispõe o art. 83 do CPC3. Apesar disso, distingue entre parte autora, que, na ação penal pública, é exercida pelo órgão que atua na primeira instância (com exceção das ações penais originárias), e parte interveniente, atribuição que compete ao Procurador de segunda instância, distinção que legitimaria a intervenção do órgão em segundo grau nas ações penais públicas, de sorte que, embora alterada a terminologia, as coisas permanecem, no essencial, como estavam.
Elmir Duclerc entende, com base nos princípios do devido processo legal e sistema acusatório, e por ser o Ministério Público, nas ações penais públicas, parte autora, que o parecer apresentado em segunda instância não tem qualquer sentido, devendo o Procurador, quando muito, sustentar oralmente o recurso ministerial (ou dele divergir) no mesmo prazo da defesa e, eventualmente, interpor recursos contra o acórdão, quando dele discordar4.
Já Rogério Schietti considera superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério consulente (fiscal), eis que, na ação penal pública, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro da instituição, ela estará sempre presente. Assinala ainda que o parecer do Ministério Público em segundo grau, que mais atende à tradição do que ao sistema acusatório, não é obrigatório, mas facultativo, devendo sobre ele se manifestar a defesa, a fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa5. No mesmo sentido, Frederico Marques e Fernando da Costa Tourinho6.
Temos que realmente o Ministério Público, nas ações penais públicas, é sempre autor (titular) da ação, independentemente da instância em que autuem seus órgãos, e essa condição (parte autora) permanece absolutamente inalterada pela circunstância de intervir em segunda instância um outro membro da instituição (Procurador Regional, Procurador de Justiça etc.). Além isso, a função constitucional de ambos os representantes é rigorosamente a mesma: defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127), não importando a que título intervenha. Afinal, o Procurador-Geral da República, os Sub-Procuradores Gerais da República, os Procuradores Regionais e Procuradores da República são o próprio Ministério Público, e não instituições distintas.
Não é preciso dizer que, independentemente da distinção entre autor e fiscal, o órgão do Ministério Público poderá sempre pleitear a condenação ou a absolvição, rever posicionamentos próprios ou alheios, recorrer etc., uma vez que aqueles que o representam não são órgãos da acusação, mas órgãos legitimadas para acusar7; afinal, há muito está superada a figura do Procurador/Promotor implacável que persegue condenações a qualquer custo e que contabiliza as absolvições como derrotas e as condenações como vitórias8.
O mais importante reside, porém, no seguinte: a distinção entre autor e fiscal da lei, apesar de tradicional e recorrente, é infundada, porque pressupõe dualidade onde existe ou deve existir unidade. Com efeito, por ser instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (CF, art. 127), sua missão constitucional, em todos os processos em que intervém, é sempre a mesma, independentemente de quem a represente (Promotor, Procurador etc.) e da entidade ou grau de jurisdição (juízo, tribunal, conselhos etc.) em que atue. Além disso, por ser a instituição una/indivisível, não parece razoável que possa se fazer representar, autonomamente, por mais de um membro num só e mesmo processo, não raro para repisar os mesmos argumentos. Aliás, exatamente por isso, ninguém propõe que, na primeira instância ou nas ações penais originárias, atuem dois Promotores/Procuradores, um como autor da ação penal, outro como fiscal da lei.
Essa situação (duas ou mais intervenções) é ainda mais incompreensível quando, nas apelações criminais, o apelante, valendo-se do disposto no art. 600, §4º, do Código de Processo, apresenta razões em segundo grau, quando é então designado um Procurador Regional para apresentar contra-razões e outro para atuar como fiscal da lei, como se representassem instituições distintas ou cumprissem funções institucionais diversas.
Dir-se-á que a situação na segunda instância é diferente: o Procurador Regional da República (ou Procurador de Justiça) não ofereceu denúncia, não participou da instrução etc., e, por isso, exerceria semelhante munus mais isentamente. No entanto, a tese, além de questionável, dada a tendência natural de o colega de segunda instância se solidarizar com o de primeira, inclusive em razão da unidade da instituição, não justificaria, por si só, a intervenção em segundo grau, mesmo porque o dever de imparcialidade é comum a todos os seus membros, motivo pelo qual são passíveis de argüição de suspeição e impedimento (CPP, art. 104 e 112). Mais: a maior ou menor isenção é um atributo personalíssimo, que, como tal, varia de pessoa a pessoa, independentemente da posição em que é chamado a atuar.
Enfim, nas ações penais públicas, o Ministério Público é sempre titular da ação – logo, parte, obviamente9 -, não cabendo falar de fiscal da lei, interveniente ou similar10, ao menos como pretexto para justificar posição processual autônoma, até porque a expressão “fiscal da lei”, que deve ser entendida como “fiscal da Constituição”, constitui expressão das mais vagas e que remete, em verdade, às próprias funções constitucionais e legais da instituição, e encerra, em última análise, uma tautologia11. Mais: o vocábulo “fiscal da lei” (generalíssimo), que é também sinônimo de controle de legalidade, notadamente da legalidade constitucional, constitui função de praticamente todos os órgãos do Estado e da administração pública, apesar da diversidade de competências: Congresso Nacional, Judiciário, Tribunais de Contas, Fazenda Nacional, Polícias etc.
Também por isso, é irrelevante a distinção – que não é de natureza constitucional, mas processual - entre parte e fiscal da lei, porque, ainda que eventualmente não seja parte num determinado processo, o Ministério Público é sempre fiscal do ordenamento jurídico, motivo pelo qual a sua intervenção judicial ou administrativa sempre terá essa qualidade como pressuposto lógico inevitável. Quando em juízo, ser fiscal da lei e ser parte significam uma só e mesma coisa: o Ministério Público quando é fiscal da lei, é parte; quando é parte, é fiscal da lei, ou seja, fiscal da Constituição12.
Por tudo isso é que parece insustentável a intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais apenas como “custos legis”, posição inclusive que não raro ofende o contraditório e a amplitude da defesa13. No futuro a atuação do MP como parecerista deve ser abolida, se é que de fato foi recepcionada pela Constituição.
Por essas e outras, temos que já é tempo de se iniciar amplo debate sobre a necessidade urgente de revisão de toda a estrutura funcional do Ministério Público, a fim de tornar a sua atuação mais racional e eficiente
Porque a história do Ministério Público é a história do Estado, um largo caminho de democratização, que só estamos iniciando, e que por isso requer uma constante revisão crítica e que implica, ao menos tempo, remover, permanentemente, mitos, ficções e alienações que impeçam essa revisão14.
1Paulo Queiroz. Direito Penal. Parte Geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição.
2Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.
3Paulo Jacobina. Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.
4Curso de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2007.
5Garantias Processuais nos Recursos Criminais. S. Paulo: Atlas, 2002, p. 91/94.
6Que escrevem, respectivamente: “o procurador-geral deve ter vista dos autos, não para neles oficiar, e sim para tomar conhecimento da causa e acompanhar seus trâmites no juízo ad quem. Abre-se-lhe vista para que verifique se deve fazer sustentação oral da acusação, colocar-se a par das questões debatidas no recurso e, se requerer intervenção nos debates orais do processo para responder à defesa, encontrar-se apto a propugnar pela condenação do acusado” (José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v.4., p.220). “Embora nunca houvesse feito referência ao assunto, continuo sem entender essa estória de o Ministério Público da segunda instância atuar como custos legis. (…) Pelo princípio do contraditório, a defesa fala por último. Sendo assim, havendo um recurso interposto na primeira instância, o membro do Ministério público que fizer as contra-razões já estará atuando como parte acusadora e como fiscal da lei, ex vi do art. 257 do CCP. Por que a ouvida da Procuradoria como custos legis? A mim me parece que o Ministério Público de segunda instância, nos recursos oriundos do primeiro do primeiro grau, devia manifestar-se apenas sobre o aspecto formal do processo, deixando o mérito para o Tribunal. Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e recursos em sentido estrito deixam entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi cortado…Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser encaminhados à OAB” (Fernando da Costa Tourinho, citado por Rogério Schietti).
7Eugênio Pacelli. Curso de Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del-Rey, 2007.
8Claus Roxin. Posición jurídica y tareas futuras del ministério público. In el Ministerio Público en el Proceso Penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 2000, p. 39.
9De acordo com Fredie Didier, parte processual é quem está na relação jurídica processual, assumindo qualquer das situações jurídicas processuais, atuando com parcialidade e podendo sofrer alguma conseqüência com a decisão final (Curso de Processo Civil. Salvador: juspodium, 2007, p. 196). De modo similar, Guilherme Marinoni: aquele que toma “parte” no litígio, ou dele faz “parte”, deve ser considerado parte; aquele que é estranho ao litígio, ou dele não faz “parte”, embora a sentença contra ele produza efeitos, deve ser considerado terceiro (Curso de Processo Civil. S. Paulo: RT, 2004, p. 117). Nem todos estão de acordo com essa afirmação, de que o Ministério Público é parte. Nesse sentido, Diaulas Costa Ribeiro, para quem, com os deveres institucionais que lhe são inerentes, o Ministério Público não pode ser parte nem estar em situação de igualdade com os advogados de defesa na relação processual (Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. S. Paulo: Saraiva, 2003, p.110). No entanto, as atribuições constitucionais do Ministério Público, embora o coloquem numa situação processual especialíssima, privilegiada, não lhe tiram a condição de parte; antes o confirmam.
10 Temos que só se pode falar de interveniente ou similar nas ações penais de iniciativa privada ou processos cíveis em que o Ministério Público não figure como autor.
11Não por acaso, nalguns países a instituição é chamada Ministério Fiscal ou Fiscalia, e seus membros são denominados Fiscais.
12Como assinalam Nelson Nery e Rosa Nery, qualquer que seja a causa que autorize o Ministério Público a intervir no processo, civil ou penal, o móvel dessa autorização é sempre o interesse público. Não existem dois interesses públicos, mas apenas um, de modo que sempre deverá intervir um representante do Ministério Público no processo civil, ainda que sejam várias as causas que determinaram sua intervenção. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. S. Paulo: RT, 2004.
13Nesse sentido, Natalie Ribeiro Pletsch. Formação da Prova no Jogo Processual Penal. S.Paulo: Ibccrim, 2007. Já Alberto Zacharias Toron propõe que, nas sustentações orais, se o Ministério Público figurar como recorrente, falará em primeiro lugar, falando em seguida a defesa, e não o contrário, como ainda ocorre. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. RT: S. Paulo, 2003, p.91/101.
14Juan Bustos Ramírez. Bases críticas de un nuevo derecho penal. Bogotá Temis, 1982, p. 150
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