Independência da Magistratura e Direitos Humanos
Dalmo de Abreu Dallari **
Excelente texto que, em razão do orador, sempre é válida a leitura
Tive a liberdade em grifar alguns parágrafos ou passagens em vermelho, além de comentários em azul
Boa leitura!
João Damasceno.
Antes de tudo, quero agradecer pelo convite que me foi feito para estar aqui hoje e dizer da minha alegria por estar entre amigos e colegas, que têm interesse por temas que para mim são fundamentais, que é o interesse pela pessoa humana, pela justiça, pelos direitos humanos. Considerei também um privilégio estar aqui ao lado do professor Koemer, porque é muito importante ouvirmos as opiniões de pessoas com uma experiência de vida diferente, alguém que não está vivendo o dia-a-dia da advocacia e do Judiciário, mas que, como ele demonstrou muito bem, está muito atento a essas questões. E muito interessante que ele venha falar a pessoas que têm formação jurídica e traga elementos que são adições àquilo que normalmente nós temos falado, ouvido e lido.
Ele ressaltou aspectos importantes da história brasileira, aspectos da história que se relacionam com o Judiciário, e isto eu considero fundamentais. É importante nós percebermos que o mundo não começa conosco, que coisas já aconteceram, que tentativas já foram feitas, e então somar esses elementos todos, tirar conclusões e ver em que pé nós estamos agora, o que fazer daqui por diante.
Eu vou fazer algumas considerações a respeito de pontos que me parecem básicos, ressaltando que a questão da independência do Judiciário, que hoje é geralmente reconhecida como essencial — e há uma ligação estreita entre as idéias de independência do Judiciário e sistema democrático, liberdade da pessoa humana e direitos humanos —. isto tudo, hoje, está na linha de frente das teorias e das discussões. Entretanto, isto é recente, é, na verdade, recentíssimo — é o que se pode dizer.
O que eu quero procurar demonstrar é que houve uma caminhada para que se chegasse ao ponto em que nós estamos, e que quando se chega a este ponto de ligar independência da magistratura e direitos humanos há um avanço, um avanço extremamente importante. Mas avanço em que sentido? Quem foi que ganhou? Será que os juízes ganharam com isso? Ganharam uma tremenda responsabilidade, sem dúvida alguma. E isto é bom para o juiz? E para o povo de maneira geral, para os titulares dos direitos humanos, o que é que isso significa?
Quero relembrar também algumas coisas pontuais a respeito do que se tem feito para ressaltar esse aspecto do vínculo entre independência da magistratura e direitos humanos, como também, fazer uma rápida reflexão a respeito dos obstáculos. Se tanta gente escreve a favor — muitos agem contra, mas ninguém tem a coragem de escrever contra a independência da magistratura — por que há tanta dificuldade, por que há tantos obstáculos? Aparentemente todos estão de acordo, que coisa formidável, então vamos começar a aplicar essas idéias. Mas que acontece, por que elas não são aplicadas, onde estão os obstáculos?
Eu começo voltando no tempo, exatamente para ressaltar alguns momentos, algumas circunstâncias que mostram como originariamente, e dizendo originariamente eu não vou para a antigüidade, mas pego o final da Idade Média, o período do Iluminismo, o Racionalismo, para nós verificarmos como o juiz era situado pelos governantes na organização política, mas para verificarmos também como os juízes se comportavam. Isto também é um ponto importante, porque — já adiantando alguma coisa daquilo que eu acho que poderia ser uma conclusão — a atitude dos juízes é fundamental para que haja uma magistratura independente. Se os juízes não quiserem ser independentes não haverá magistratura independente. E será que é estranho dizer: ‘‘há juízes que não querem ser independentes”?
Então, voltando no tempo — estou me colocando nessa fase que eu mencionei —, eu vou verificar na Inglaterra, que é importante, nas discussões sobre a magistratura, uma série de disputas entre o parlamento e o rei para saber quem é que deveria controlar os juízes. quem deveria dominar os juízes, e os juízes aparecem numa situação de submissão. Há um ensaio de Francis Bacon, Sobre o Magistratura, que me parece muito interessante e expressivo e é oportuno que seja lembrado agora. Nele Bacon escreve isto: “Os juízes devem se lembrar de Salomão, que tinha leões ao pé do seu trono. Os juízes devem ser leões, mas leões aos pés do trono”. Isso define uma mentalidade, uma concepção do que é que se esperava dos juízes.
Quando nós nos colocamos no panorama francês — que influiu muito mais sobre a formação da magistratura brasileira — nós verificamos que instalada a aristocracia, instalados os privilégios da nobreza, aparece a magistratura, mas a magistratura como um instrumento de garantia desses privilégios. E há mesmo um momento muito curioso, interessante, no chamado arnica régime, em que a magistratura é privatizada e se torna propriedade de determinadas pessoas. Assim, por exemplo, Montesquieu foi juiz. Como é que Montesquieu foi juiz? Porque herdou o título de juiz de um tio. Naquela oportunidade — segundo os historiadores da magistratura francesa —, os juízes usavam e abusavam dos seus poderes.
Os juízes – que primeiramente eram todos ligados a nobreza — decidiam conflitos, mas nem os nobres ficavam satisfeitos porque os juízes vendiam muito caro as suas decisões, os juízes decidiam um conflito e ficavam sempre com a maior parte. Isto foi muito importante para que se criasse uma mentalidade de resistência aos juízes. Alguns historiadores franceses dizem que se criou, mesmo, ódio aos juízes, as pessoas tinham medo dos juízes. O raciocínio era este: “Eu vou submeter o meu caso ao juiz e o juiz é quem vai sair ganhando. Eu certamente vou sair perdendo”. Prosseguindo, quando se chega no final do período das revoluções burguesas — a última grande revolução burguesa foi a Revolução Francesa —, há uma série de transformações extremamente importantes. Essa fase histórica oferece matéria muito rica, mas eu vou fazer um esforço para resistir as tentações e ficar naquilo que nos interessa imediatamente.
Um aspecto inovador especialmente importante é a afirmação da supremacia da lei. Isto também já se tinha proposto na Inglaterra: a supremacia da lei. A lei é que deve governar as pessoas, os povos, porque o governo de homens é arbitrário, o governo de homens e injusto. Isto está, inclusive, também, em Montesquieu. Só que com um pormenor que, na verdade, é um aspecto fundamental. Quando Montesquieu diz: “O governo dos povos, das sociedades, deve ser governo de leis e não governo de homens”, ele explica o que era a lei na sua concepção: era a lei natural. Mas a lei natural não na concepção de São Tomás de Aquino, com fundamento teológico, era a lei na concepção racionalista. “A lei é a relação necessária que deriva da natureza das coisas.”
Era na natureza das coisas que se devia procurar a lei, relação necessária. Os seres humanos vivem necessariamente em conjunto, não vivem isolados, relacionam-se e, nesse relacionamento, há uma série de elementos naturais que estão presentes. Entre tais elementos naturais estão as características da pessoa humana, inclusive, com os seus valores e com aquilo que já muitos tinham afirmado serem direitos naturais.
Traduzindo isso para a linguagem do nosso tempo, diríamos isto: a lei nasce da realidade social. Por outras palavras, a lei não é uma criação arbitrária de ninguém, ela é produto das relações sociais. Eu encontro a lei pela razão, observando as relações sociais. A idéia era essa, e isto vai ser, aparentemente, colocado na primeira Constituição da França, em 1791, quando se diz que “ninguém pode ser obrigado a fazer e ninguém pode ser proibido de fazer alguma coisa, a não ser com base na lei”.
Aí há um aspecto que é extremamente importante e que daí a bem pouco vai influir sobre a situação e o comportamento dos juízes: é a afirmação de quem não existe direito fora da lei. Lei e Direito são sinônimos, e daí dar-se ao juiz o papel de “boca da lei”. A lei já está feita, o juiz não tem outro papel a não ser dizer o que é a lei, o que é que está escrito, e pronto, nada mais do que isso.
A mesma Constituição estabelece uma diferenciação que não tinha sido cogitada antes, nem na Revolução Francesa, bem ao contrário disto: a Constituição estabelece uma dupla cidadania, fala, pela primeira vez, em cidadãos ativos. Uns são cidadãos ativos e outros são cidadãos comuns. A mesma Constituição diz quem poderia ser cidadão ativo. Primeiro, eram os homens franceses, e homem, aí logo se verificou que era isto mesmo, não era gênero humano, a pessoa humana, era homem mesmo, era sexo masculino, ou, para usar de uma expressão mais da moda hoje, era o gênero masculino. Isso quer dizer que houve a exclusão das mulheres da cidadania ativa.
Mas ao mesmo tempo a Constituição excluiu também os trabalhadores, quem fosse empregado de alguém não poderia ser cidadão ativo, além disso exigia-se a condição de proprietário. De acordo com alguns teorizadores do liberalismo do século XVIII, o proprietário tem mais interesse na ordem social, o proprietário tem mais experiência porque ele administra os seus negócios, ele tem mais responsabilidade por ser proprietário e então ele é que deve governar. E assim se estabeleceu uma sociedade formalmente discriminatória, mas com um aspecto novo, extremamente importante: a discriminação é feita na lei, pela lei — é a discriminação legalizada.
E qual o papel que se vai dar ao direito ou ao ensino do direito, qual o papel que se vai dar ao juiz? Muitos dos historiadores do ensino jurídico francês assinalam que os juízes eram preparados para conhecer e aplicar a lei, sem interpretação ou crítica. Eu ressalto que a partir daí o ensino do direito passou a ser o ensino da lei, ensina-se a lei dizendo que se está ensinando direito. E aqui eu abro um parênteses para dizer que infelizmente isso ainda ocorre. Quando um professor entra na sala de aula — e há muitos que fazem isto — com o código na mão e vai lendo artigo por artigo e diz para os alunos que está ensinando direito, ele não está ensinando direito coisa nenhuma, está ensinando a lei e, fingindo que faz a crítica, ele usa alguns sinônimos para dizer por outras palavras o que está escrito no código. Eu tenho dito aos estudantes que deveriam ficar ofendidos, porque “esses professores deveriam saber que vocês não são analfabetos, vocês podem ler em casa, não precisavam vir à escola para ler”.
Mas a par disso houve outras coisas importantes que foram marcantes e vão chegar à magistratura. Assim, por exemplo, até hoje Filosofia do Direito não faz parte dos currículos jurídicos na França. E surpreendente para muitos de nós quando se toma conhecimento disto. Ainda no ano passado, na Universidade de Paris, conversando com alguns colegas eu falava a respeito disso e eles diziam: “é isto mesmo, eu quis ler uma obra de Duguit e precisei comprar uma tradução italiana, porque há muitos anos não se reedita Léon Duguit na França”. Por quê? Porque não interessa. Não interessa à justiça, não interessa a pessoa humana, não interessam as relações humanas: interessa apenas a lei. “Então estudante, estude a lei”. E o juiz tem que ser treinado — esta é a expressão — para a aplicação da lei. É isto!
E chego ao início do século XIX com este tipo de direito, esta concepção de direito que terá um juiz adequado a esta concepção, assim como terá o ensino jurídico de acordo com a mesma concepção. Esta concepção do direito-lei, exclusivamente a lei, e da discriminação legalizada, a discriminação que é feita pelo legislador, pelo cidadão ativo delegado dos cidadãos ativos. Estes, trocando em miúdos, são os dominadores, é a classe social dominante. Queiramos ou não — não vamos ter medo das expressões é a burguesia governando através da lei. E a lei a serviço dos interesses, dos privilégios econômicos e sociais.
Um parênteses, só para chamar a atenção para um dos efeitos disso, aí veio o Código Civil e disse que o marido é o chefe da sociedade conjugal. Nós tivemos isso até há pouco tempo no Brasil. Mas isso não contradiz o lema da Revolução Francesa, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”? A afirmação de que todas as pessoas, todos os seres humanos nascem com direitos naturais e um deles é a liberdade e outro a igualdade? Isso tudo foi posto de lado. E o que nós verificamos é que a partir daí não se fala mais em igualdade. Os próprios franceses usaram “liberdades públicas”, é uma expressão que se toma corrente.
As Constituições, que na verdade não tiveram, durante quase duzentos anos, a eficácia jurídica que ganharam hoje, são utilizadas mais como verdadeiros manifestos políticos, contêm lá no fim um capítulo bem formal sobre os direitos individuais. Mas não há qualquer preocupação com a possibilidade de uso dos direitos. Declarou-se que os direitos existem e quem puder que use os direitos e quem não puder, problema seu. Não há na verdade a preocupação em aplicar os preceitos constitucionais. (É a crise do Direito que perdura, tornar-se ou torná-lo efetivo, Penso que poucas nações têm conseguido implementar essa máxima, mas não há êxito total em nenhuma delas. Prefiro a sábia frase do Profeta Isaías, aproximadamente 700 anos antes de Cristo, em seu livro, cap. 64:6, "que nossa justiça é como trapo de imundícia", sendo o senso de justiça pessoal que desemboca nos valores coletivos e que formam o todo, a sociedade. Entretanto, isto não exaure o eterno perseguir pelo perfeito, pois, mesmo cônscios que não somos perfeitos, e em buscar a perfeição, somos aprimorados pela tentativa, como ensina o Apóstolo Paulo).
E onde é que ficam os juízes nesse quadro? Há um momento que é muito importante, em relação a isso. Esse momento é Napoleão Bonaparte, é o começo do século XIX. Os juízes eram muitas vezes odiados, temidos, estavam a margem. Napoleão, de certo modo, recupera os juízes e dá uma posição social muito importante à magistratura. Há documentos napoleônicos em que se faz a afirmação de que 05 juízes eram os servidores civis mais importantes do Império. De um lado havia servidores militares, de outro os civis. E os juízes eram os servidores civis mais importantes do Império. Os juízes ganham comendas, os juízes ganham honrarias e são até muito bem pagos. Mas são servidores do imperador, este é um ponto fundamental. O juiz é um servidor, e um servidor é submisso, ele não vai controlar os atos do imperador, ele não vai interpretar, não vai ver se o ato do imperador é juridicamente válido ou não, ele é um servidor, um servidor fiel, um servidor dócil.
Depois, na França, estabeleceu-se uma praxe — a França teve várias revoluções, teve muito mais Constituições do que o Brasil — mas a praxe foi esta: cada vez que havia uma dessas revoluções os juízes eram obrigados a fazer um juramento formal de fidelidade ao novo governo. E os juízes faziam, este é um problema sério. Os juízes aceitaram essa situação. Então se criou a magistratura dócil, servil, submissa, auxiliar do imperador.
Essa prática, com as devidas adaptações, tem seguidores até hoje, imperadores com outros nomes que gostam muito da idéia de ter a magistratura servil, submissa, e que ficam muito irritados quando o juiz quer pensar, quer avaliar a legalidade e constitucionalidade dos atos do governo. Isso tem raízes na história, foi daí que tiramos a nossa magistratura bem comportada. O professor Koerner chamou a atenção para alguns momentos excepcionais e alguns personagens fazendo tentativas de mudança, mas na verdade não se conseguiu a mudança, as coisas prosseguiram. Eu lembraria — para não dar muitas voltas -— um lema de que ficou famoso como símbolo da Primeira República brasileira, do período que vai desde a proclamação da República até 1930: “Para os amigos tudo. Para os inimigos, a lei”. E 05 juízes foram muito usados para implantação deste lema.
Esse é um dado importante da história, que explica, em grande parte, aquilo que hoje muitos vêem como crise: a crise do Judiciário, quer dizer, a crise de desobediência. E crise porque o Judiciário está mudando de atitude e, se está mudando, não quer dizer hoje, nesta semana ou há um mês. E porque ele iniciou na verdade uma luta, está se definindo um novo direito, mas está se definindo também um novo Judiciário.
Isso tem o seu início — vejam, as coisas não acontecem por acaso —, isso tem início logo depois da Segunda Guerra Mundial, no século XX. Em 1948 publica-se a Declaração Universal de Direitos Humanos. Nesse mesmo período, logo em seguida, aparece na Itália o movimento Magistratura Democrática e no manifesto de lançamento do movimento, os juízes que se diziam de esquerda e muitos eram comunistas — a Itália não tinha o problema que nós tivemos no Brasil, de considerar o comunismo uma espécie de satanismo, a Itália era mais livre do que isso e juízes puderam dizer: “nós somos juízes e somos comunistas”. Incluíram uma expressão muito importante, que é afirmação de que passariam a fazer justiça de um modo novo. Significa: “nós não queremos mais ser submissos ao Executivo, às classes sociais privilegiadas, nós não queremos ser aplicadores cegos da lei, nós queremos buscar a Justiça efetivamente”.
Mais adiante, não muito tempo depois, vai aparecer na França o Sindicato da Magistratura. A criação do Sindicato da Magistratura também foi um movimento de rebelião, de rebeldia dos juízes que já não suportavam mais, já não aceitavam mais a situação de servidores civis do imperador. Em seguida surgiu a Associação Juízes para a Democracia, na Espanha, que depois, para grande felicidade nossa, refletiu-se no Brasil e hoje é um movimento importante na magistratura brasileira. Eu chamo a atenção para isso tudo, para que se perceba que houve uma caminhada.
Essa idéia de independência da magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou sempre a própria idéia de magistratura — eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justiça de São Paulo — o que é um grande equívoco. São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco e que provocam crise, provocam conflitos. Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanças, o crescimento da idéia de direitos humanos. Há um aspecto da história da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à história européia, mas fica lá num plano isolado, que é o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente, nos Estados Unidos. É oportuno lembrar a atitude política dos Estados Unidos durante todo século XIX, ficando numa posição (praticamente - JD) de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças (exceto com a própria Inglaterra - JD). Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso não se refletiu nos direitos de estilo e tradição romanística, mas é muito interessante esse aspecto da história dos Estados Unidos.
Desde o começo da vida norte-americana já se discutia a questão da independência dos juízes. Quando os norte-americanos aplicaram na prática, inserindo na Constituição, o sistema de separação de poderes, a coisa talvez mais importante que eles fizeram naquele momento foi ampliar as idéias anteriores para valorizar o Judiciário, para dar ao Judiciário autonomia e atribuir-lhe a categoria de poder político. E comum a gente ler nos manuais que a separação de poderes foi invenção de Montesquieu, o que é absolutamente equivocado. A defesa dessa idéia já aparece em Aristóteles e depois ressurge com um autor italiano do século XV, Giovanni Gravina e depois reaparece com Maquiavel. (Acrescento que, dado que muita gente desconhece ou não tem interesse em conhecer, Montesquieu retirou a idéia da separação dos poderes da Bíblia, pois este casou-se com uma calvinista, protestante à época da separação da igreja católica romana, e supõe-se que somente após esse fato é que teve acesso a uma Bíblia traduzida. A separação dos poderes de governo já havia sido dada a Moisés, logo após a saída do povo do Egito, onde os 10 mandamentos são um resumo de toda a lei, sendo Israel o primeiro estado do mundo a ter uma constituição. A separação consistia na existência de 3 figuras no exercício do poder no estado que estava se fundando: o rei (executivo das leis previamente escritas - Mosaica), os sacerdotes (intérpretes e auxiliares do rei e com a incumbência de ensinar a lei a todo o povo), os sacerdotes também assumiam as funções de legisladores, permitindo-se ao rei leis executivas ou acerca das guerras, e de juízes, dando cumprimento à constituição existente - Lei Mosaica, e, por fim, os profetas, por assim dizer, o poder moderador, sendo uma figura com o perfil do atual Judiciário, para confirmar, criticar, rever e até condenar os atos do rei ou dos sacerdotes. Não obstante tais observações, o Israel antigo e em formação, era calcado na premissa de um governo de teocracia, onde Deus guiaria todos, incluindo os atos do rei e demais autoridades. Em sábia e brilhante atitude, sem nenhum exemplo próximo na história da época, o rei Josafá, cujo significado do nome é: "o Senhor é juiz", fazendo jus ao nome, aproximadamente 800 anos antes de Cristo, no II Livro das Crônicas está registrado que ele estabeleceu juízes nas cidades mais importantes, a exemplo do nosso juízo de 1º grau, e em Jerusalém, capital, estabeleceu o juízo de 2º grau, sendo o primeiro relato histórico da instituição do duplo grau de jurisdição, colegiada, e ainda distribuiu competências no 2º grau, sendo que um colégio, com presidente, julgaria "as sentenças contestas" (recursos) de origem dos assuntos do povo (civil, penal, etc.) e o outro colégio julgaria os recursos dos assuntos do rei (executivo), conforme consta em II Crônicas, cap. 19, versos 4 à 11. (Recomendo a leitura da Bíblia na versão atualizada - RA -, ao invés da revista e corrigida - RC -, pois a RA possui grafia e terminologia consentânea com a escrita atual, após penúltima reforma ortográfica do português no Brasil). (Fonte: Bíblia; A história do povo hebreu - Flávio Josefo, CPAD; Wikipédia). JD.
Montesquieu trata sim, efetivamente, da separação de poderes, mas rigorosamente Montesquieu fala em dois poderes. Sua idéia era que haveria um Poder Normativo e outro que, não por acaso, chamou de Executivo, o qual se bifurcava. E um dos ramos do Executivo seria o Judiciário. Isto teve também grande importância e influiu para que se concebesse o Judiciário como uma esfera do Executivo.
Os norte-americanos avançaram muito em relação a isso. Tinham o temor do absolutismo, mas também tinham a lembrança, pela sua própria origem de uma espécie de absolutismo do Parlamento, que tinha ocorrido na Inglaterra. E, por isso conceberam o sistema que foi chamado de “freios e contrapesos”, que é o que está na Constituição americana, segundo o qual todo o Poder Legislativo cabe ao Congresso, o Congresso é quem legisla. Até hoje o presidente dos EUA não tem iniciativa de projetos de lei. A participação dele é relativamente pequena em termos de legislação e o Executivo, então, é o executor das leis. A idéia era essa: o Poder Legislativo fixa as normas e o Executivo é obrigado a agir nos limites dessas normas, a fazer aquilo que a norma determina e a não fazer aquilo que a norma proíbe. Mas os constituintes norte-americanos acrescentaram um terceiro poder político, que foi o Judiciário. Segundo essa concepção, o Judiciário é o elemento de equilíbrio, ele é o controlador do respeito à Constituição. Desde o início da vida norte-americana essa questão foi muito ressaltada e muito cedo se chamou a atenção para a importância que o Judiciário assumia. E extremamente interessante e muito referida, às vezes com certa ligeireza, a famosa decisão do juiz Marshall no caso Marbury versus Madison, no ano de 1803. O que foi realmente que Marshall fez que foi tão importante? Uma afirmação da competência do Judiciário para controle de constitucionalidade dos atos dos outros dois poderes. Sim, isto também. Mas o que de fato aconteceu foi que durante o período de implantação do Estado norte-americano já apareceu a idéia de que era fundamental que houvesse um Judiciário independente. E aí aparece a idéia do Judiciário constitucionalmente independente, do Judiciário que vai garantir os direitos fundamentais, inclusive contra os eventuais abusos do próprio Legislativo, do juiz que para isso precisa ser independente.
É interessantíssima a atitude de Thomas Jefferson, a meu ver um dos maiores nomes da história norte-americana, em relação a esse aspecto, porque a questão aconteceu exatamente com Jefferson na presidência dos Estados Unidos. Por que razão houve conflito? Porque os juízes eram designados. Cada presidente, segundo se havia estabelecido e era a maneira como se interpretava a Constituição, cada presidente tinha o direito de designar juízes. E que aconteceu? Uma lei de 1801 criou a inamovibilidade dos juízes — foi lá que nasceu a inamovibilidade. Então havia juízes nomeados antes que Jefferson assumisse a presidência e ainda não haviam sido empossados. Um deles era esse Marbury e foi assim que se estabeleceu esta discussão, pois o novo governo disse que iria ignorar todas aquelas nomeações, porque era direito do novo presidente nomear. E alegou que a obrigação de dar posse a um juiz nomeado pelo presidente anterior não estava de acordo com a Constituição. Entretanto, com base na Constituição e para afirmar e garantir a independência dos juízes, foi que se tinha estabelecido legalmente a inamovibilidade. Para que não houvesse o risco de nenhum presidente querer mudar um juiz, tirá-lo de seu cargo porque ele não convém a seus interesses políticos. Então desde aí se consolida a independência do Judiciário, ao mesmo tempo em que se afirma o seu caráter de poder político. (Há razão e sentido do porque Ruy Barbosa prestava homenagens à República dos EUA, recém criada e em maior avanço que nós, desde então).
Tudo isso, entretanto, como eu disse, ficou à margem, pois os norte-americanos ficaram, de certo modo, à margem da história. Eles não quiseram participar de todas as questões mundiais, até praticamente o final do século XIX. Então o que realmente prevaleceu foi a linha francesa. Em relação à linha francesa eu quero relembrar uma colocação muito interessante feita por um antigo magistrado e historiador da magistratura francesa. Yves Lemoine, crítico da magistratura francesa, diz — considerando que até hoje as funções do Ministério Público e de juiz integram, conjuntamente, a carreira da magistratura e há urna interferência enorme, sempre possível, do ministro da Justiça — que “na França nós temos três magistraturas: uma que é a magistratura sentada, que é a dos juízes — porque os juízes trabalham sentados. A magistratura de pé, que é o Ministério Público, que fala em pé ao nível do chão por isso se chamou parquet — ele fica de pé discursando, falando, apresentando suas razões. E temos uma terceira magistratura, que é a magistratura deitada — que é aquela dos juízes que antes de decidir perguntam: “Senhor ministro, como quer que eu decida este caso? Isso quer dizer que, na verdade, grande parte da magistratura é magistratura deitada”. Infelizmente, entre nós temos também magistratura deitada.
Pois bem, a partir da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos começa um trabalho no sentido de dar eficácia às normas de direitos humanos e a própria ONU avançou muito quando, em 1966, aprovou os Pactos de Direitos Humanos que eram, então, pactos, tinham a natureza de tratados multilaterais, obrigavam juridicamente — coisa que não acontecia com a Declaração de Direitos.
Mas a partir daí surge o problema da eficácia das normas de direitos humanos. Agora elas têm eficácia jurídica, mas como garantir na prática esta eficácia? E aí que se começa a ressaltar a extraordinária importância dos juízes para o cumprimento deste papel. Em muitas obras já se fala nisso, em muitos tratados isto foi mencionado e os próprios pactos de direitos humanos mencionam a necessidade da independência do juiz, ao mesmo tempo em que falam na garantia de julgamento independente e imparcial como um dos direitos humanos fundamentais. Note-se que aqui nós vamos ver o encontro de dois interesses fundamentais. E um direito do juiz ter independência para julgar. Aí há também um direito das pessoas a esse tipo de julgamento. Cada indivíduo, cada pessoa humana, tem o direito de ter seu caso, de ter sua acusação examinados e julgados por um juiz que seja independente e imparcial. Aliás, essas expressões sempre apareceram juntas, independência e imparcialidade. Isso é tão importante que se incorpora ao conjunto dos direitos humanos fundamentais.
Prosseguindo, quando muita coisa já se tinha dito e havia já um forte reconhecimento da importância da independência da magistratura, a ONU, em 1994, aprovou uma importante resolução, que é a Resolução número 41. Por esta resolução, a Comissão de Direitos Humanos decidiu recomendar a criação do cargo de relator especial sobre a independência do Poder Judiciário. Isso quer dizer que se considerava tão importante que houvesse o Judiciário independente, reconhecia-se que isso era indispensável para a garantia dos direitos, e por isso foi designado um Relator Especial permanente.
A Comissão de Direitos Humanos da ONU, que funciona em Genebra, fez esta recomendação ao ECOSOC — o Conselho Econômico e Social — e o Conselho aprovou a proposta. E desde então existe este relator. Anualmente ele apresenta o seu relatório, mas permanentemente faz o acompanhamento da situação da independência da magistratura no mundo. E é interessante verificar — eu sintetizo aqui em três itens — os objetivos que foram atribuídos a este Relator Especial: 1) investigar denúncias sobre restrições à independência da magistratura e informar o Conselho Econômico e Social sobre suas conclusões; 2) Identificar e registrar atentados à independência dos magistrados, advogados e pessoal auxiliar da justiça, identificar e registrar progressos realizados na proteção e fomento dessa independência; 3) fazer recomendações para aperfeiçoar a proteção do Judiciário e da garantia dos direitos pelo Judiciário.
Isso está implantado desde 1994 e, como uma seqüência procurando reforçar esse trabalho e dar publicidade a ele, a Comissão Internacional de Turistas, uma ONG com sede em Genebra que assessora a ONU para Direitos Humanos, no ano de 1971, criou um Centro para a Independência de Juizes e Advogados. Aliás, nesse caso juízes não é a expressão mais adequada. Melhor seria magistrados, porque tanto na Itália quanto na França, a magistratura incluiu também o Ministério Público. Então é o Centro para a Independência da Magistratura e dos Advogados.
Um dado importante é que anualmente a Comissão Internacional de Juristas publica um relatório sobre a situação da independência de magistrados e advogados no mundo. O último publicado foi sobre o ano de 1999 e nele constam vários casos de ofensas, agressões, restrições a magistrados e advogados no Brasil. Esses relatórios são publicados, são relatórios para conhecimento público, eu tenho procurado fazer com que a biblioteca da Faculdade de Direito da USP tenha todos os relatórios porque acho isso extremamente importante.
Por aí se pode ver que há uma preocupação enorme com a garantia de independência da magistratura. E por que razão? Porque se chegou à conclusão de que embora os Pactos de Direitos Humanos e outros tratados, pactos e convenções estabeleçam regras que, em princípio, são obrigatórias para os governos dos listados signatários, na verdade haverá dificuldades na implantação. Haverá resistências e é muito importante que as pessoas interessadas – ou diretamente interessadas ou interessadas enquanto participantes de um povo — tenham a possibilidade de recorrer ao Judiciário para garantia dos direitos fundamentais.
E aqui me parece oportuno ressaltar um aspecto que é muito importante. O Doutor Alberto Silva Franco mencionou o Tribunal Penal Internacional, nas mesmas publicações mais recentes, como, por exemplo, para ficar entre os autores brasileiros que cuidam disso, as obras do professor Cançado Trindade reconhecem que, embora seja desejável a existência dos tribunais internacionais, a efetiva proteção, por enquanto, depende dos tribunais nacionais. De fato, ainda é pequena a possibilidade de acesso aos tribunais internacionais. Mas surge daí, então, uma indagação: os tribunais nacionais, os juízes nacionais, têm condições para efetivamente darem proteção a esses direitos?
Surgem daí algumas questões que eu vou mencionar por me parecerem importantes. A primeira questão: o que seria efetivamente a independência do Judiciário, a independência do juiz? De modo simplificado, sintético, eu diria que, em primeiro lugar, é a possibilidade de formar livremente sua convicção, de executar sua tarefa livre de qualquer espécie de coação. Quando menciono "qualquer espécie de coação” quero lembrar que a coação pode ser física e pode ser de outra espécie, pode ser a coação política, econômica e, inclusive, psicológica. Então, o juiz verdadeiramente independente tem que ter essa possibilidade da formação livre de sua convicção.
Em segundo lugar, isso se completa com a possibilidade de decidir adotando a solução que o juiz considera a mais justa entre as permitidas pela Constituição. Surge aqui um aspecto que me parece extremamente importante e que eu vou assinalar lembrando que o primeiro movimento inspirado na tentativa de afirmação de independência dos juizes do Brasil foi, na verdade, o do Rio Grande do Sul, dos juizes gaúchos com a AJURIS — Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Foi na AJURIS que se implantou o mais importante núcleo do direito alternativo no Brasil. Por quê? Porque, à maneira dos juízes italianos, os gaúchos já não aceitavam mais aquele papel de aplicadores dóceis da lei, sem crítica. E então proclamaram isto: “Como as leis que nós somos obrigados a aplicar são leis que discriminam, são leis que promovem injustiças, a partir daqui não vamos mais aplicar a lei, nós vamos fazer justiça”. A meu ver, com todo o respeito que merecem os juízes gaúchos, essa é uma posição equivocada, porque abre o caminho para a arbitrariedade. E não é necessária nem conveniente a rejeição da lei. Com efeito, enquanto tudo isso acontece, enquanto a magistratura vai-se rebelando, vai-se tornando mais independente, uma nova idéia de direito também vai-se implantando. um novo constitucionalismo já está se definindo. E nesse novo constitucionalismo o que se verifica é que foi extremamente acentuada, reforçada, a característica jurídica da Constituição. Canotilho mesmo já chamou a atenção para isto quando disse que “as normas constitucionais passam a ser normas vínculo”, no sentido de que são todas obrigatórias. Todas as normas constitucionais são obrigatórias, a partir daquelas ou, talvez devesse dizer, principalmente aquelas que fixam princípios. A este respeito há um trabalho interessante do professor Celso Antônio Bandeira de MeIlo, chamando a atenção para a importância dos princípios e dizendo que, no seu entender — e eu estou de acordo com ele —, essa é a parte mais importante da Constituição porque é condicionante de tudo mais.
Fazendo aplicação disso, que a nossa Constituição, logo no capítulo primeiro, afirma alguns princípios como fundamentos da República: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho. Assim sendo, se um juiz for tomar uma decisão, for decidir de certa maneira, e verificar-se que aquela decisão vai agredir a dignidade de uma pessoa, tal decisão será inconstitucional. O juiz não pode decidir assim e se alguém for fazer uma lei, publicar um decreto, praticar um ato assim, ofendendo um princípio consagrado na Constituição, não poderá porque afetará um princípio constitucional. É preciso ter isto muito claro e assumir a responsabilidade de decidir tomando por base a Constituição. Na verdade, isto é ser independente. Indo agora mais adiante, se nós quisermos indagar quais são os obstáculos, quais são as razões para não se ter o Judiciário ou a magistratura independente, de modo geral eu diria que todos os sistemas totalitários, todas as ditaduras detestam a idéia do juiz independente, não o podem tolerar. É da natureza de um sistema totalitário não admitir o juiz independente. Mas nós temos este tempero, o sistema autoritário. Não há na teoria política uma definição clara que nos permita dizer: até aqui é autoritário e a partir daí se torna totalitário. Mas são sistemas que se afastam de padrões democráticos, ou para favorecer o próprio governante ou, o que é muito comum, e no Brasil isto acontece muitíssimo, para o favorecimento de oligarquias usam-se mecanismos democráticos, formalmente democráticos, mas sob o rígido controle de oligarquias.
Eu vou contar, em breves palavras, uma experiência que eu tive no período da constituinte. Há muitos anos trabalho com índios, defendendo comunidades indígenas. Já fui muitas vezes ao Judiciário em defesa de índios. E quando se fez a Constituição de 1988, nós advogados aqui de São Paulo, onde há um pequeno grupo que trabalha nisso, nós já tínhamos conseguido várias decisões favoráveis aos índios. O estatuto do índio, que é a lei fundamental dos índios e das comunidades indígenas, normalmente era aplicado contra o índio, e nós já estávamos revertendo isto, conseguindo várias decisões favoráveis aos índios por reinterpretação. E então nós sustentamos que era melhor manter-se a competência da Justiça Estadual para os assuntos indígenas, porque já havia uma jurisprudência em formação. Foi quando colegas de outros Estados, principalmente dos Estados onde há muito maior número de índios — Mato Grosso, Amazonas, Goiás —, disseram: “Mas a sua visão está equivocada, porque o único lugar do Brasil onde juízes estaduais decidem a favor de índios é São Paulo”.
Eles queriam dizer que em todos os outros lugares os juízes são, de algum modo, ligados às oligarquias, aos donos da terra. Então nenhum juiz julga a favor do índio, nunca, em hipótese alguma. Assim sendo, a possibilidade de ter um Judiciário independente, capaz de uma decisão a favor do índio, é dar competência à Justiça Federal. E foi por aí que se deu a competência à Justiça Federal, porque nós, profissionais de diversas áreas e instituições que trabalham com os índios, fazíamos parte de um dos Iobbies atuando junto à constituinte. E então eu também estive de acordo, outros estiveram, e nós propusemos isso, que acabou ficando, mas exatamente por esta razão. Assim, na verdade, temos um sistema formalmente democrático, mas dominado por oligarcas e por elites.
Existem também lugares em que há uma democracia formal e não há, efetivamente, bem caracterizada a oligarquia, mas o sistema coloca o Judiciário numa situação de submissão. Um exemplo disto é exatamente a França. Realmente, na França, ainda hoje, a interferência do ministro da Justiça no Judiciário é sempre possível, e muitas vezes acontece. Vou contar outra experiência. No ano passado eu fui à Indonésia, fui chefiando uma missão da Comissão Internacional de Juristas, composta de quatro advogados de diferentes nacionalidades. Nós fomos à Suprema Corte, conversamos com muitos juízes e lá nos verificamos que a submissão da magistratura ao Executivo é constitucional e o Executivo usa isto efetivamente. Existem mecanismos legais de submissão que retiram a independência do Judiciário e os juízes acham isso normal.
Sob uma outra perspectiva, eu quero mencionar ainda que há razões de várias espécies levando à perda da independência, ou à redução da independência. Em primeiro lugar eu mencionaria razões políticas, mas razões políticas que estão muito ligadas à origem do Estado moderno, especialmente ao sistema francês, e que estão muito ligadas à existência de oligarquias. Isso tudo tira a independência da magistratura, devendo-se lembrar que há muitos juízes que fazem parte da oligarquia. Só para ilustrar, o professor Calmon de Passos, eminente processualista, contou que quando Antônio Carlos Magalhães era governador da Bahia havia um presidente do Tribunal de Justiça que o chamava de “meu chefe”. Vocês imaginem que independência teria essa magistratura. E houve um dia em que Antônio Carlos Magalhães teve que prestar um depoimento, porque a oposição tinha iniciado uma ação, e ele disse: "Não quero privilégios, eu volto lá, vou ao Tribunal de Justiça para prestar o meu depoimento”. Quando se anunciou que o governador estava chegando todas as Câmaras pararam os seus trabalhos, todos os desembargadores, devidamente enfarpelados, foram à porta da rua para receber o governador. E eles é que controlavam o governador, a legalidade dos atos do governador. Evidentemente não controlavam coisa alguma. Na realidade, era a submissão mais absoluta. Eles, na verdade, fazem parte, ou faziam — não sei até que ponto deixaram de fazer parte da oligarquia. Vivas são as palavras de Octávio Mangabeira
Mas nós temos também a submissão por razões econômico-sociais, as pressões feitas sobre juízes. Assim, por exemplo, hoje nós estamos vendo isto, a pressão por via dos orçamentos, a redução e o congelamento de recursos, alegando que há desperdício. E uma forma de estrangular o Judiciário: negar meios, negar recursos financeiros. Mas nós vemos também a coação pelas elites econômicas e sociais, feita de muitas maneiras, como se faz por exemplo, utilizando a grande imprensa — a grande imprensa que é, antes de tudo, grande empresa. Por que razão se diz: “Os sem-terra armados estão ameaçando os fazendeiros”, e aí aparecem fotografias, todos eles com enxadas, com seus instrumentos de trabalho. E ao mesmo tempo a notícia de que os fazendeiros, coitadinhos, precisam defender-se. Então eles estão se armando, organizando bandos armados, mas aí é com arma de fogo mesmo. Os sem-terra estão formando quadrilha e os ditos fazendeiros, que em grande número são, na verdade, grileiros de terras públicas, esses são respeitáveis cidadãos defendendo-se. E o pior, há juízes que acolhem essa argumentação, quer dizer, acolhem essa argumentação ou porque foram formados nessa mentalidade ou porque temem aquela pressão feita pela grande imprensa.
Por último quero mencionar aquilo que eu chamaria de submissão voluntária. Quer dizer, é o juiz que não defende a sua independência, é o tribunal que aceita com docilidade as restrições e interferências e não defende a sua independência, muitas e muitas vezes porque há interesses pessoais ou corporatívos. Quem vive a magistratura sabe disto. É comum um juiz, um desembargador, um membro do STJ, estar sonhando com o Supremo Tribunal Federal — e é o presidente da República quem faz as indicações. Então, “quem sabe se eu for bonzinho ele vai lembrar”, e alguns bonzinhos chegaram a elevadas posições desse modo. Isto é a submissão voluntária, que muitas vezes é reflexo do medo de represálias. E muitas vezes o que há, é simplesmente a acomodação.
Há registros, no caso da Alemanha nazista, de que os juízes, na quase totalidade, aceitaram o nazismo e passaram a julgar segundo os interesses nazistas. Na França se registra isso no chamado regime de Vichy. A França submissa aos alemães e os juízes, tranqüilamente, julgando segundo a vontade dos novos senhores. E, infelizmente, nós tivemos isso no Brasil — eu vivi isso como advogado — com os juízes que aceitaram os atos institucionais, os atos complementares e fizeram isso sem nenhum sofrimento. Houve alguns raríssimos casos de juízes que se opuseram. Não se haveria de pretender que um juiz saísse de arma na mão contra os militares, mas que ele julgasse segundo o Direito. E muitos julgaram ostensivamente contra o Direito porque era mais conveniente. (Prestamos homenagem a um juiz cassado - Américo Masset Lacombe e a todos os outros, anônimos, que trilharam o mesmo caminho da independência e ética).
Para concluir, acho que há necessidade de nós reconhecermos, primeiro, que é fundamental a independência da magistratura. E voltando à minha questão: a independência da magistratura é importante para quem? Será que não é um privilégio do juiz querer ser independente? Peço licença para ler uma frase do meu livro O Poder dos Juízes, onde eu trato desta questão. Eu digo isto: “longe de ser um privilégio para o juiz, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes independentes e imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direito”.
A rigor pode-se afirmar que o juiz tem a obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode facilmente ser reduzida a uma farsa, a uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças. Então, por tudo isso, volto ao que eu disse no início que se deveria refletir: será que é bom para o juiz ser independente? Será que é bom para os juízes uma magistratura independente? A minha resposta é: para o juiz autenticamente juiz, o juiz que acredita no Direito, o juiz que tem compromisso com a justiça, o juiz que se preocupa com a proteção da dignidade da pessoa humana, é importantíssima a independência, é ótima a independência da magistratura. Em sentido oposto, se o juiz se preocupar, antes de tudo, com seus interesses pessoais, se ele encarar sua carreira como uma oportunidade de ascensão social, de obter algum proveito pessoal, quem sabe prestígio, posição ou mesmo enriquecimento material, esse juiz não necessita da independência. Por tudo o que foi dito, minha conclusão final é que eu tenho a firme convicção de que no Brasil nós temos uma magistratura direcionada para a busca e a sustentação da independência. E acredito que dentro de poucos anos isso será um ideal comum da ampla maioria da magistratura brasileira.
Complementaria ainda, em resposta a indagação formulada, que o grande problema brasileiro está na cúpula do Judiciário. Vou citar o milagre e o santo, não há porque não citar. O ministro Nelson Jobim é um caso típico, pois está sendo reconhecido como o líder do governo no Supremo Tribunal Federal, inclusive pelo hábito — já se tornou um hábito — de se pedir vistas de autos quando começa uma votação e o governo vai perder. Então, o ministro Nelson Jobim tem autos em sua gaveta há dois anos, três anos... Não há corregedoria, ele faz isso e fica por isso mesmo, todo mundo sabe que se faz isso.
Nós temos também os juízes que estão se especializando em cassar liminares. É incrível, juízes de diferentes partes do Brasil apreciam as circunstâncias, examinam os dados e os argumentos e vêem que há uma ilegalidade, uma inconstitucionalidade, e dão uma liminar. É curioso, mas às vezes uma hora depois esta liminar já está cassada. Fico deslumbrado em ver como a tecnologia avançou. Mesmo à distância e sem ter todos os dados aquele ministro já conseguiu saber tudo sobre o assunto e já cassou a liminar. A poucos dias tivemos isso, uma liminar contra o leilão do Banespa, por haver ilegalidade no ato do ministro que determinou o leilão. Na hora mesmo em que se anunciou a liminar, que foi concedida por um desembargador federal, pessoa iminente, professor da PUC, figura respeitável — o ministro interessado disse: “não tem nenhuma importância, vamos manter o leilão”, porque ele não tinha qualquer dúvida de que a liminar seria cassada, como efetivamente foi.
O problema é das cúpulas e acho que isto é fundamental. Por exemplos como esse, que não são casos isolados, nós teríamos que modificar profundamente a maneira de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Embora eu seja a favor do Tribunal Constitucional, enquanto houver Supremo Tribunal Federal, ou outro que faça as suas vezes, exerça suas atribuições, acho que teria que ser mudada a maneira de escolha. Nós temos no sistema norte-americano um método de escolha aparentemente semelhante ao nosso, só que com uma diferença: nenhum presidente norte-americano indica alguém para a Suprema Corte antes de consultar a Bar Association (Ordem dos Advogados), antes de dar ampla publicidade à sua intenção de nomear alguém para o Supremo. Eu mesmo já tive a oportunidade de ter contato com um advogado que tinha sido sugerido como possível ministro da Suprema Corte e acabou não sendo nem indicado, porque houve tanta reação das escolas de Direito e outras entidades que o presidente não o indicou. Em nosso caso o presidente da República tira o nome do bolso do colete, indica e não tem dúvidas que será aceito.
Além disso, a direção dos Tribunais de Justiça também deve ser objeto de modificação. Já expus antes minha posição, já escrevi sobre isso. Como tenho reafirmado sempre, acho normal que a direção do Tribunal seja dada a Desembargadores porque são juízes mais antigos, com mais experiência, mas não me parece que haveria prejuízo se todos os juízes votassem para escolher o presidente do Tribunal. Seria mais democrático e aproximaria muito mais os juízes de primeira instância e colocaria sempre em questão a necessidade de atualização do Judiciário, o papel do Judiciário, o seu papel político, inclusive. Acho, sim, que esta democratização é absolutamente necessária.
** Membro da Cátedra Unesco/USP de Direitos Humanos, Professor Titular e ex-Diretor da Faculdade de Direito da USP, ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo.
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