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quarta-feira, 2 de junho de 2010

O declínio do Leste Europeu e os ‘castings’ do Homem-pênis

Os castings do Homem-pênis

por Felipe Rigon Spack

Os países do Leste Europeu são conhecidos pelas belas modelos e atrizes pornográficas fornecidas aos estúdios norte-americanos todos os anos. Sylvia Saint e Sophie Evans são exemplos da safra de atrizes que, nos anos 90, invadiram a indústria mundial do sexo enlatado. Muitos diretores fizeram fama e fortuna quase exclusivamente a partir desse “mercado”. Um deles, o francês Pierre Woodman, ganhou notoriedade por ser também uma espécie de iniciador de jovens beldades no mundo da pornografia. Viajando pelo Leste Europeu, Woodman, que alega ter feito sexo com mais de 3.000 mulheres, descobriu talentos como a tcheca Sylvia Saint, que já foi a atriz pornográfica mais bem paga do mundo. Suas viagens, mais freqüentes na década de noventa, até hoje rendem frutos: ele mantém um site exclusivamente dedicado a seus populares “castings”.

“Casting” vem do verbo “to cast”, que no meio artístico significa selecionar o elenco para um filme ou peça de teatro. Em seus castings, Woodman transa diante das câmeras com as meninas que coleta nas ruas e shoppings de Praga, Bratislava e Moscou, a maior parte delas com idades entre 18 e 20 anos. Pode-se dizer, sem duplo sentido, que Woodman está provando um produto que, se passar no controle de qualidade, será exportado para todo o mundo. Uma das centenas de selecionadas é Aisha, uma jovem húngara de dezoito anos e belos olhos azuis. Ela é filmada por Woodman enquanto se submete a uma longa entrevista, com o auxílio de uma intérprete. Os modos da esbelta jovem em nada sugerem uma femme fatale ou uma boneca humana, e o embaraço que demonstra revela inexperiência. Woodman, por sua vez, age como bom aliciador: não coage, não ofende, fala com uma voz macia um inglês com acento afrancesado. Discorre relaxadamente sobre o mundo do sexo explícito. Chega à sinceridade de dizer que o mercado exige certas práticas heterodoxas, e pergunta se a jovem está realmente certa do que quer. Ela não hesita em dizer que deseja agarrar a oportunidade. A conversa continua por mais algum tempo e de repente um corte no vídeo mostra o casal em um quarto de hotel, visto a partir de uma câmera fixa. A relação sexual acontece de maneira mais ou menos normal (é evidente que Woodman procura as posições mais fotogênicas – afinal, ele está trabalhando). Não há indícios de estupro nem de sofrimento – na verdade, a jovem atinge um orgasmo durante as filmagens.

O site de Woodman é um grande negócio – ele cobra cerca de 300 euros pela subscrição de uma conta. No fórum online, dedicado a comentar os vídeos, clientes adoram-no como a um mito. O grande atrativo do produto de Woodman é que, ao contrário de megasites de pornografia, ele vende o sexoreal, isto é, um sexo explícito realmente consentido pela mulher que, ali, não é ainda uma atriz experiente em fingir, mas uma jovem que concordou em ter sua intimidade devassada. Que especificamente o Leste Europeu seja palco para esse “choque de realidade”, porém, é algo que chama atenção.

Belos corpos sem esperança – desconto de 50%

No senso comum dos fãs de Woodman, a profusão de atrizes do Leste Europeu na indústria pornográfica é atribuída ao “despudoramento” dessas mulheres, exatamente como a presença das brasileiras na prostituição internacional é atribuída à “lascividade” intrínseca do sangue mestiço etc. Contudo, para além dos preconceitos de classe média, a boa e velha “mão invisível” liberal pode apontar mais seguramente a verdadeira razão do boompornô do Leste Europeu nos anos 90, em que Woodman e tantos outros fizeram seus pés de meia: boas mercadorias por um preço baixo.

Quais são as condições econômicas necessárias para que boas atrizes pornográficas estejam disponíveis a preços baixos? Em primeiro lugar, uma grande oferta de jovens saudáveis e bem-alimentadas. Em segundo lugar, uma extraordinária falta de futuro. Nem todos os países oferecem ambas condições: se a miséria é tanta e tão antiga que não existem nem oportunidades nem garotas saudáveis, o mercado simplesmente não se interessa, como prova a virtual inexistência de atrizes pornográficas etíopes ou afegãs. Por outro lado, o aliciamento se torna difícil se há belas jovens sadias, mas com oportunidades de ter uma vida “satisfatória” através de carreiras convencionais. Não se ouve falar em mulheres francesas ou israelenses como um “artigo de luxo” no mercado pornográfico ou na prostituição internacional. O Leste Europeu, porém, parece ser o lugar ideal para os castings de Woodman: milhões de jovens crescidas sob o manto de bem-estar do socialismo real e deixadas sem oportunidades pelo capitalismo real têm sido encontradas ali desde a década de 90.

Se há um lugar em que o reformismo capitalista foi desenvolvido até o limite, esse lugar foi a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Embora o trabalho alienado jamais tenha sido abolido, é inegável que os países que integravam o antigo bloco socialista tiveram pelo menos duas gerações de populações saudáveis, bem-alimentadas e razoavelmente instruídas, em comparação com os padrões em que vive a maior parte da população mundial atualmente. Desde pelo menos a segunda metade da década de 50, a assistência de saúde na União Soviética atingiu 100% de sua população de mais de 200 milhões de habitantes, e se estendia inclusive aos estrangeiros. Na mesma década, o analfabetismo chegou a praticamente zero, enquanto no Brasil de hoje, sessenta anos depois, ele ainda assola cerca de 10% da população. A URSS gozava, portanto, de uma população saudável, bem alimentada e instruída ao menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Não se espanta que, quando caiu o Muro de Berlim, fosse grande a quantidade de homens e mulheres de beleza física.

A derrocada da economia planificada fez com que o PIB dos países do bloco soviético se reduzisse abruptamente, desorganizando a produção “socialista” e reorganizando o capitalismo. Durante a década de 90, a queda real do PIB nos países da ex-URSS foi de cerca de 50%. Entre 1992 e 1999, cerca de 130 mil estatais soviéticas foram privatizadas por cerca de 9 bilhões de dólares – cerca de 1/200 avos de seu valor de mercado. A sociedade de classes estava sendo restaurada em toda sua magnitude. Acompanhando a instabilidade econômica, que lançou milhões às ruas, surgiu uma grande instabilidade política, ilustrada pela dissolução do Congresso por Boris Yeltsin em 1993. Esse período de turbulências, porém, longe de ser uma “anomalia” evitável, era o vale de lágrimas perfeitamente “normal” que o capitalismo impõe à maior parte da população mundial.

Com a restauração do capitalismo, a vida prosaica mas estável que Aisha e seus pais conheceram colapsou de uma hora para outra, dando lugar a uma vida sofisticada para uma minúscula fração da ex-burocracia comunista e, por outro lado e como contraponto necessário, a uma vida brutal e instável para a grande maioria da população soviética. Estima-se que, apenas na primeira década após a queda do Muro, cerca de 500 mil russas foram traficadas para os mercados de exploração sexual mundo afora. Os índices de homicídio, alcoolismo e consumo de drogas, especialmente de heroína, tiveram um crescimento vertiginoso. Hoje, o consumo de álcool é o mais alto do mundo, com um índice 3,6 vezes superior ao da média mundial. Com essas pioras, a expectativa de vida da população reduziu-se em pelo menos 5 anos, menos de uma década após o fim do socialismo. É sobre esse pano de fundo que a venda dos corpos de jovens como Aisha passam a ser um bom negócio, tanto para os Woodmen mundo afora quanto, especificamente, para elas próprias.

A face escondida da troca

Não devemos cair na tentação fácil de dizer que valores como a “dignidade da pessoa humana” impõem certos limites à troca mercantil, e que deveríamos retirar de Aisha a liberdade de vender seu corpo através de uma intervenção estatal proibitiva. Para compreender o verdadeiro problema, seria mais sensato, neste ponto, partir da premissa liberal segundo a qual Aisha age como um sujeito de direitos dono de sua própria vida e dotado de uma autonomia individual, que permite a ela vender seu corpo como faz qualquer trabalhador. A diferença é que, em vez de alugar seu rosto, como uma modelo regular, ou alugar sua voz, como uma telefonista, ou mesmo seu afeto, como uma babá, ela aluga sua imagem e sua atividade sexual. Em troca, pode receber um pagamento polpudo, que lhe permite comprar bens confortáveis e até mesmo – quem sabe – financiar os próprios estudos, o que o salário de uma funcionária terceirizada jamais permitiria. Longe de ser um ato de escravidão, Aisha pratica uma profunda liberdade contratual.

A questão, portanto, não é que Aisha tenha sido coagida a praticar uma violência contra si mesma. Embora esse tipo de barbárie também aconteça freqüentemente com milhões de mulheres por todo o globo, o mundomainstream da pornografia é regido por contratos muito precisos e advogados bastante competentes (inclusive formados em ótimas universidades), o que demonstra que eles são fruto do que há de mais esclarecido em nossa civilização – o império da lei e os direitos e garantias individuais. Nos castings de Woodman, as garotas realmente aceitam praticar sexo com ele diante de uma câmera em troca de dinheiro e sucesso. A questão, porém, é: quais foram as condições que as levaram a aceitar a sua proposta? Por que essas condições não aparecem no “casting” como parte da realidade que é mostrada? Se o mundo real é tão excitante, por que não mostrar os pais, ou tios ou amigos alcoólatras dessas jovens, que só na Rússia perfazem 6 milhões – e, desses, pelo menos 54 mil menores de 14 anos? Ou a história de como suas mães perderam seus empregos, ou de como a cobertura de saúde e a educação simplesmente se esfacelaram durante a década de 90? Por que os vídeos não trazem relatos sobre a parte sofrida de suas vidas? O sofrimento não faz parte da realidade?

Só podemos concluir que o “real” dos castings, limitado ao que pode ser excitante para o consumidor, mostra ser ele próprio uma ficção, mas muito mais verossímil que um filme pornográfico convencional, porque parece retratar os fatos “como eles são”. Essa “realidade” faz a devassidão parecer voluntária, uma vez que, de antemão, o espectador já assumiu que a vontade da garota de transar diante da câmera é “verdadeira” e que independe, portanto, de contextos materiais, necessidades ou algo do tipo – é como se, ao assistir o vídeo, os consumidores pensassem: “essas garotas é que são doidas e transam por dinheiro porque querem; por isso, nós podemos consumir os filmes sem culpa”. Não é esse, no fundo, o protótipo do argumento liberal por excelência? O patrão quer contratar o empregado, o empregado quer o emprego; a empresa quer os consumidores, os consumidores querem os produtos da empresa; a “atriz” quer o dinheiro de Woodman, e Woodman quer comprar o corpo das atrizes. Todos lucram no final, pois o caixa do supermercado e o frentista ganham seus empregos, o patrão ganha o lucro e nós, consumidores, ganhamos um bom serviço. Cumpre-se, assim, aquele paradoxo – ou seria paralaxe? – do capital: a troca, em si, ocorre sem violência e coação, mas a vida imediatamente antes e depois da troca é plena de violência e coação, de modo que o mercado, espaço em que as trocas se realizam, aparece como o verdadeiro reino da liberdade…

Esse nível mais fundamental da ideologia (exempilficado na “vontade livre” de Aisha), que já preexiste na consciência dos consumidores dos vídeos de Woodman, é precisamente o nível mais perigoso. Escapar dele leva-nos a ter de assumir uma posição prática diante do problema, isto é, a querer compreender a totalidade das relações sociais que sustentam aquela situação, lançando fora a confortável idéia da “autonomia da vontade”. Se nos damos conta do fato de que uma menina de 18 anos que nunca saiu de seu país – e talvez de sua cidade – não pode compreender o que significa entrar para a pornografia mundial enquanto conversa tranquilamente em um quarto de hotel, temos consciência de que existe um grande sistema de relações sociais montado para que isso aconteça, e mais: montado para que essas relações permaneçam ocultas tanto para Aisha (até que seja tarde demais, pelo menos) quanto para o consumidor final.

A prova de ferro, aqui, é entender que, apesar de o orgasmo de Aisha ser “real”, seu verdadeiro sentido só pode ser dado pelo conjunto mais amplo de relações sociais em que ele acontece. Aisha não está momentaneamente transando por dinheiro com um homem em um quarto de hotel, mas diante das câmeras e dos olhos de milhões de pessoas, dando origem a um vídeo que será reproduzido por anos a fio e gerará muito lucro ao seu parceiro; não é apenas uma moça que transa com um homem mais velho, mas uma jovem de 18 anos sem expectativas de futuro que transa com um experiente aliciador, integrante de um ramo de negócios que movimenta 13 bilhões de dólares ao ano nos EUA. Seu belo corpo foi construído pela luta – traída e desfigurada, mas ainda luta – de gerações de trabalhadores de todo o mundo, que sonhavam com que seus filhos e filhas não precisassem se vender ao capital – não apenas sexualmente, mas também física e emocionalmente. Quando Woodman se deita com ela em um quarto de hotel, não é ele, mas o capital que lhe apalpa os seios, lhe puxa os cabelos e a sodomiza; é o capital que, triunfante, expõe-na a todos os olhos do mundo feito um pedaço de carne, anunciando a toda a classe trabalhadora o que reserva para suas filhas e netas, enquanto perdurar seu reino.

3 comentários:

  1. E tem gente que leva um cara desse a sério! Pára meu, ou tu não sabe que na URSS milhões foram assassinados pelo regime? Eram todos reacionários capitalistas que mereciam morrer? Tu acredita que num regime socialista real a democracia tem alguma chance? Tu crê em duendes? Ou tomou algum chá alucinógeno? Cada louco que me aparece!

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  2. Ô meu jovem! Eu acho que você não teve a capacidade de compreender o que leu.
    O texto faz referência a decadência moral e financeira dos países que compunham o bloco socialista, de modo que os jovens de lá não têm futuro e é muito fácil cooptar mulheres lindas para trabalho em filmes pornográficos, com a proposta de grana fácil.
    Sim, o sistema anterior, antes da falência total, possibilitiva educação e sistema saúde melhor do que os atuais.
    Cresça e apareça!

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  3. Olá!
    Eu li todo o seu texto e ele está ótimo.
    Seu texto Bateu direitinho com o meu entender sobre o Leste europeu. O que acontece lá é a pobreza e falta de expectativa de futuro pra toda população do Leste Europeu. Aquela velha história, quem não tem cão, caça com gato...Eles não tem o que querem no convencional, então eu vendo o meu corpo e faço grana pra suprir minhas necessidades e vontades...É aí que entra a mão do explorador, aliciador e covarde Pierre Woddman - ele aproveita das dificuldades causada pelo sistema político que falhou na vida dos seus. Eu sei da história desse lixo chamado Pierre Woddman. Ele aproveita da brecha que a lei permite, a brecha que a vida dá ele na vida daqueles "pobre" garotas...algumas nem maturidade alcançou na vida e esse aproveitador cai como solução roubando a vida delas. ( Pela lei são maiores de idade ) Mas sabemos que como ser humano ainda não estão prontas, você mesmo cita a Aisha com dezoito ( 18 ) anos muito novinha, acabou de sair da adolescência, Woddman roubou a vida daquela garota, mudou o rumo da história dela. ESSE (WODDMAN)ESTÁ PRONTINHO PRA SENTAR NO COLO DO CAPETA.
    Não estou fazendo julgamento dele - ele mesmo está plantando o que vai colher...Amigo, seu texto é bom, valeu, mas fico por aqui, ok!
    Abraço!!

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