Há juízes e promotores que dão prioridade às aulas
Abro um livro com diversos artigos, de muito boa qualidade, e em um deles vejo o mini-currículo do autor: mestre e doutor em Direito, professor em 3 Faculdades de Direito, em um curso preparatório, um de especialização e, ao final, promotor de Justiça. O exemplo é real e não fictício. Mas o caso concreto não importa. Por isso, omito quem e onde. O que interessa é o fato do cargo de promotor de Justiça ser o último da relação.
O que ponho em discussão é a relação entre a docência e o exercício das funções de magistrado ou agente do Ministério Público. Creio que é bom juiz e promotor (ou procurador da República) estudar e lecionar. Abre a mente, alarga os horizontes, possibilita atualização, convívio com a juventude, mais proximidade do mundo real, tudo isto refletindo de forma positiva no exercício das funções. Só que alguns ignoram os limites.
A Lei Orgânica da Magistratura Nacional estabelece no art. 26, II “a” e § 1º que juiz só pode ser professor uma vez e se houver correlação de matérias e compatibilidade de horários. O Conselho Nacional da Magistratura (Resolução 34/2007 ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (Resolução 3/2005) regulamentaram a matéria estabelecendo os limites.
Mesmo assim alguns avançam no magistério, a ele, dedicando a maior parte de seu tempo, conhecimento e experiência. Duas, três Faculdades (às vezes distantes), cursos preparatórios (pagam melhor), especialização, coordenação (diretor), mestrado e doutorado. Outros, mais ambiciosos, montam cursos preparatórios ou assumem franquias dos cursos mais exitosos.
Para quem não sabe, lecionar dá muito trabalho. Foi-se o tempo daquelas duas aulinhas por semana, calmamente, com um agradável chá na sala dos professores e um bom bate-papo. Agora, a rotina consiste em planos de aula, provas, recursos contra as notas dadas, reuniões, relatórios, avaliações, colocação das notas na internet e outras tantas providências.
Na verdade, as Faculdades (principalmente as particulares) tem que prestar contas aos órgãos de controle (Ministério da Educação), aos alunos (que são os consumidores, os que pagam) e apresentar resultados positivos nos exames da OAB. Por isso, são exigentes com os professores.
Disto resulta, em um certo momento, que a magistratura ou o Ministério Público passam a ser a última prioridade. Como possibilitam maior flexibilidade de horário (principalmente o Ministério Público), as aulas vão assumindo o papel de atividade principal. E quem dá aulas o tempo todo, tem disposição física para examinar centenas de processos? De atender as partes? De participar de longas audiências? Não, por certo.
A magistratura e Ministério Público são atividades diferenciadas. A começar pelo fato de serem agentes políticos e não servidores públicos. E, por isso, gozam de todas as garantias necessárias à plena autonomia (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos). Ganham bem e tem 60 dias de férias por ano.
Em um mundo de insegurança, estes agentes políticos possuem a mais plena estabilidade. Podem exercer suas relevantes funções com autonomia e independência absolutas. E é muito bom e importante que assim seja. Neste ponto o Brasil está à frente da maioria absoluta dos países.
Só que quem tem esta segurança assegurada tem que dar a retribuição à sociedade. Não pode fazer da carreira uma atividade secundária. Usar a assessoria para fazer andar os processos, sem comprometimento, e sair a dar aulas aqui e ali, reforçando o orçamento. Absolutamente não. Aos que tem a ambição de tornar-se milionários - e nisto não há nada de errado- sugere-se que peçam exoneração e enfrentem a disputa de mercado.
As garantias da magistratura e do Ministério Público não caíram do céu. Foram conquistadas passo a passo, pela dedicação de alguns de seus membros. Só para que se tenha ideia disto, nos anos 1930 é que se iniciou a luta para que na magistratura houvesse promoções por antiguidade. E foi nos anos 1970 que o Ministério Público iniciou a trajetória para firmar-se como instituição forte, sendo de 1971 o primeiro grande encontro nacional, em São Paulo.
Usar todas as conquistas feitas ao longo de dezenas de anos e, ao mesmo tempo, buscar outras atividades para aumentar o lucro, chega a ser uma traição àqueles que dedicaram todas as suas vidas a estas instituições. Bem, mas se a matéria é regulamentada por lei e resoluções, como se explica que isto ocorra?
É simples. Em alguns locais (não todos) o controle é frouxo. A Corregedoria não fiscaliza. Afinal, é muito mais fácil ser condescendente do que apurar. Exigir cansa, desgasta, arrumam-se inimigos. E no MP dos Estados, onde o procurador-geral é eleito pela classe, um corregedor severo não tem muita chance de sucesso quando quiser ocupar o cargo máximo da carreira.
Então, qual a saída? A primeira delas é a conscientização dos próprios envolvidos. E isto deve ser feito desde o momento da aprovação, nos cursos promovidos pelas Escolas da Magistratura ou do Ministério Público. Em um segundo momento, pelas Corregedorias, que, se omissas, podem até responder por isso. Em um terceiro momento pelas Universidades (e Faculdades) que devem ter conhecimento das proibições. Finalmente, pela sociedade que deve estar alerta ao problema e apontá-lo formal ou informalmente. Formar bons profissionais, dedicados e voltados para a atividade pública integralmente, é luta permanente e que deve ser atacada em frentes diversas. A limitação do ensino pelos agentes públicos é uma delas.
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