O destino de Demóstenes Torres revelou-se caprichoso. Quando ainda posava de nadador, notabilizou-se pela crítica destemida. Agora que se sabe que nasceu para afogado, o ex-Demóstenes encontra-se submetido às decisões de dois alvos de sua insolência: Roberto Gurgel, chamado por ele de “covarde”, e Ricardo Lewandowski, comparado a uma balilarina do grupo É o Tchan.
Em junho do ano passado, Demóstenes assinou com outros senadores de oposição representação contra Antonio Palocci, o ex-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff. Endereçada ao procurador-geral da República Roberto Gurgel, a peça pedia a abertura de inquérito para apurar o enriquecimento de Palocci como consultor.
Gurgel mandou a petição ao arquivo. Entrevistei Demóstenes. Abespinhado, o senador disse que o chefe do Ministério Público Federal “se acovardou”. Acusou-o de usar “os mesmos argumentos do Palocci para, praticamente, absolver o ministro.” Pegou pesado: “É como se o Palocci tivesse escrito a decisão para ele.”
Nessa época, o mandato de Gurgel na Procuradoria estava na bica de expirar. Ele dependia de uma decisão de Dilma para ser reconduzido ao cargo. Demóstenes bateu abaixo da linha da cintura. Língua crispada, disse que o procurador-geral livrara Palocci da grelha de olho na recondução.
“Isso ficou, na minha opinião, evidente. É uma pena. Muitas vezes, é mais honroso perder um cargo pela coragem do que ser reconduzido por uma aparente conivência. O procurador-geral, na minha opinião, se acovardou”. Àquela altura, a voz do senador já soava nos grampos que fariam dele um ex-Demóstenes.
Sem suspeitar que a gaveta de Gurgel guardava desde 2009 um inquérito da Polícia Federal apinhado de diálogos vadios travados com o amigo Carlinhos Cachoeira, Demóstenes rememorou na entrevista passagens dignificantes de sua biografia.
“Em 1988, eu era um jovem promotor. Pegava ônibus em Arraias [ex-município de Goiás, hoje incorporado ao Tocantins] e vinha a Brasília para defender a autonomia do Ministério Público. Vinha brigar na Constituinte para que o Ministério Público conquistasse sua autonomia.”
Prosseguiu: “Conquistamos o que tanto queríamos. E agora o Ministério Público continua se comportando como se fosse um órgão do governo! Fico me questionando se valeu a pena toda a luta que tivemos. A decisão do procurador-geral foi muito arriscada para a estabilidade política e para a própria democracia.”
Demóstenes esmiuçou o raciocínio: “Ao agir como instituição de governo, o Ministério Público compromete a sobriedade que se espera dele. Submete-se a juízos políticos. Os indícios existem e a investigação [contra Palocci] não foi aberta.”
Acrescentou, em timbre premonitório: “Amanhã, o que o procurador-geral não viu hoje no caso do Palocci, ele pode enxergar numa representação contra um senador ou um deputado de oposição acusado de enriquecimento ilícito. Essas coisas não podem ser subjetivas.”
O destino, essa fração de segundo em que o sinal muda de verde para amarelo e o sujeito decide se para ou avança, já havia piscado para Demóstenes. Enquanto o senador vergastava o procurador-geral, a Polícia Federal o escutava em novos grampos, dessa vez na Operação Monte Carlo.
Os diálogos com Cachoeira não deixavam dúvida. Demóstenes convertera-se em ex-Demóstenes. O crítico de Gurgel decidira avançar o sinal vermelho. Submetido ao novo inquérito, o procurador-geral juntou-o ao primeiro, misturou as conversas de 2009 às de 2011 e representou contra o senador no STF.
Por mal dos pecados, a petição de Gurgel desceu à mesa do ministro Ricardo Lewandowski. Logo ele, outro alvo da língua viperina de Demóstenes. O desafeto do senador apalpou a peça na tarde da última quarta-feira (28). Menos de 24 horas depois, já havia determinado a abertura de investigação, ordenando ao Banco Central que quebrasse o sigilo bancário do ex-Demóstenes.
Seis meses antes, em setembro de 2011, Demóstenes indignara-se com o comportamento de Lewandowski na presidência da sessão de julgamento do pedido de registro do PSD de Gilberto Kassab, no TSE. Desertor do DEM, Kassab prevalecia sobre a tentativa de sua ex-legenda de bloquear a criação do novo partido.
Encerrada a sessão, entrevistei Demóstenes. Ele soou, de novo, implacável. Evocando o passado de advogado sindical de Lewandowski, o senador levantou dúvidas quanto à isenção do magistrado: “Foi a primeira vez que eu vi um ministro de tribunal voltar aos tempos de advogado para defender abertamente a criação de um partido.”
Demóstenes foi à jugular: “O Lewandowski fez lembrar seus tempos de advogado de sindicato. Ele pode cobrar honorários do Kassab.” Depois, o senador fez troça. Criou uma analogia para facilitar o entendimento do modo como vira a sessão do TSE. Enxergara no plenário uma apresentação do antigo grupo musical ‘É o Tchan’, aquele conjunto de axé em que a bailarina loira rivalizava com a dançarina morena.
Viu em Lewandowski uma das bailarinas. Enxergou no ministro Marco Aurélio Mello a outra dançarina. “Todo mundo que assitiu pela TV Justiça teve a oportunidade de ver o Lewandowski dançando na boquinha da garrafa e o Marco Aurélio se esforçando para segurar o Tchan.”
Referia-se ao debate que opôs Lewandowski a Marco Aurélio. O primeiro tentando apressar o registro do PSD. O outro defendendo o respeito ao rito processual do TSE. Agora, na pele de relator do processo contra o ex-Demóstenes, Lewandowski dança ao ritmo do toque de caixa.
Além de mostrar a Demóstenes que quem nasceu para afogar-se na amizade com Cachoeira não merece chegar a nadador, o destino acomodou o senador no mesmo barco de Gurgel e Lewandowski. Mas só o ex-Demóstenes está na água.
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