A PARTIR DE MARÇO
Privatização de cartórios na BA pode dificultar fiscalização e promover tabeliães sem concurso público
Felipe Amorim - 21/01/2012 - 11h46
Último estado do país a ter os cartórios extrajudiciais ainda ligados ao poder público, a Bahia inicia o processo de privatização da máquina cartorial que gera cerca de R$ 200 milhões por ano a partir de 26 de março. A Lei Estadual 12.352, aprovada por unanimidade e aclamação na Assembleia Legislativa em setembro de 2011, além de tornar mais distante a fiscalização da atividade pelo poder judiciário, também dá a possibilidade de que o servidor, hoje chefe de cartório, escolha se continua no setor público ou se assume a titularidade do cartório, sem precisar ser aprovado em concurso.
Por determinação do TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia), os tabeliães tinham até o dia 9 de janeiro para manifestar o interesse em receber a titularidade do serviço privatizado. Até o momento, dos 1.680 cartórios da Bahia, apenas 156 tabeliães optaram pela privatização e podem, se aprovados, estar isentos de prestar concurso público para assumir o posto. Todos os demais cargos — inclusive os cerca de 500 cartórios vagos no estado — serão preenchidos somente após realização de processo seletivo regulamentado por lei.
Caio Druso, advogado e procurador do estado da Bahia, acredita que essa ferramenta adotada para dar mais agilidade ao processo de privatização é inconstitucional. “A lei estadual veio como um remédio, mas esse remédio trouxe um veneno”, afirmou.
A disposição do artigo 236 da Constituição Federal estabeleceu, em 1988, que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público”. Entretanto, o artigo 47 da Lei Federal dos Notários 8.935 — que regulamenta a atividade —, de 1994, explicita que somente os servidores nomeados até outubro de 1988 detêm “delegação constitucional” e podem assumir a chefia sem passar por concurso. Isto significa que, segundo Druso, os tabeliães que assumiram o posto após a data estipulada pela CF e pleiteiam a titularidade do serviço privatizado estão indo contra a lei brasileira.
Em entrevista ao Última Instância, a presidente do TJ-BA, desembargadora Telma Brito, afirmou que a medida adotada não está em dissonância com a lei. “Os servidores passam para o privado pela lei sem concurso, porque eles fizeram concurso para o ingresso na titularidade do cartório no serviço público”, disse.
Fiscalização
O presidente do IAF (Instituto dos Auditores Fiscais do estado da Bahia), Helcônio Almeida, acredita que a preocupação maior é com a questão da fiscalização. “Se o poder judiciário tinha antes dificuldade para fiscalizar a atividade, agora, com a privatização, essa necessidade aumenta ainda mais”, disse ao ressaltar que os cartórios ganham mais autonomia com a nova lei estadual.
É certo que nenhum órgão especial será criado para realizar a tarefa. “A fiscalização continua na Corregedoria do TJ-BA como está na lei federal”, explicou a presidente do Tribunal.
Embora acredite na idoneidade da Corregedoria do TJ-BA, Almeida não crê que a instituição vá dar conta do recado. “Os juízes corregedores têm muito trabalho”, explica o presidente do IAF, ao relatar a quantidade de processos e investigações nas mãos de cada magistrado.
“Sem recursos materiais e pessoais necessários para implementar uma fiscalização mais rigorosa, vamos continuar na mesma situação”, teme Almeida. Ele também acredita que o Ministério Público deveria contribuir com a tarefa de fiscalizar a atividade cartorária.
O advogado e procurador Caio Druzo vai mais além. Para ele, é necessário expor e tornar públicos os casos de desvios cometidos pelos serviços cartoriais, para estimular os órgãos competentes a resolvê-los. “Tão importante quanto o controle externo da Corregedoria e do CNJ [Conselho Nacional de Justiça], é o controle externo da opinião pública”, afirmou.
Grileiros
Sobretudo no interior da Bahia, onde a fiscalização é ainda mais ausente, há o temor de que as irregularidades nos cartórios se aprofundem. Em regiões menos urbanizadas, é comum a prática da grilagem, na qual, por meio de falsificação de escrituras, grileiros buscam se apropriar indevidamente de terrenos.
“Há sim o risco da perpetuação de esquemas que são contrários ao interesse público”, afirma Druso. Ele também cita o retraimento que muitos têm em denunciar os desvio às corregedorias competentes, por temer intimidações e retaliações. “Um agricultor numa cidade do interior precisa pensar muitas vezes antes de tomar qualquer providência”, exemplifica.
O caso das denúncias feitas nos municípios de São Desidério e Barreiras é ilustrativo. Nele, acusações contra o publicitário e empresário Marcos Valério, investigado por grilagem de terras, ganharam grande repercussão, gerando, inclusive, a demissão da cartorária suspeita de envolvimento.
Custos para a população
“A expectativa do cidadão é que ele não continue a ter o tratamento que tinha antes”, afirma Helcônio Almeida. Ele explica ainda que, apesar do serviço ser tido como público, está muito associado ao emprego escuso de tramoias e ardis. “Você tinha que pagar por fora e buscar uma relação de amizade para que o processe andasse mais rápido, que é algo que o cidadão abomina”, ilustra.
Embora a privatização estimule a conversão do serviço em uma atividade de caráter mais empresarial e, portanto, mais célere e organizada, Druzo não crê que seja o suficiente. De acordo com ele, caso mantenham-se os profissionais titulares — como permite a lei estadual —, é bem possível que persista também a “cultura dos cartórios: uma cultura da ineficiência e da insegurança”.
Quanto aos custos para a população, o TJ-BA já divulgou uma tabela que contém os novos valores a serem cobrados a partir de março, quando parte dos cartórios já devem estar privatizados. As novas taxas e emolumentos dividem as opiniões de quem acompanha a questão.
Para Almeida, o aumento foi significativo. Embora concorde que a relação custo-benefício é discutível, ele faz um alerta: “caso os cartórios não forem privatizados até março, os preços precisam voltar ao patamar anterior”. Para os cartórios ligados ao poder judiciário, o cálculo do reajuste é feito com base no IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).
Por outro lado, Druzo crê que dificilmente haveria viabilidade econômica para o projeto se não houvesse o reajuste dos valores. “A tabela da Bahia já estava defasada há algum tempo”, explica.
Embora Druzo acredite que há uma justificativa para o aumento dos preços cobrados, ele ressalva: “a questão econômica não pode ser um empecilho”. Isto, pois a legislação baiana estabelece um fundo de compensação para auxiliar os cartórios menos lucrativos.
Na Bahia, somente cerca de 200 cartórios são rentáveis. Divididos por região, algumas localidades apresentam um volume muito intenso de processos. Desta maneira, alguns cartórios — sobretudo os de registro de imóveis — podem chegar a um faturamento mensal entre R$ 100 mil e R$ 300 mil; enquanto os demais cartórios, prejudicados pela baixa incidência de processos, sofrem para fechar as contas.
O Fundo Especial de Compensação busca diminuir essa discrepância e tornar mais atrativa a atividade onde os lucros são menores. Constituído por 23% dos valores cobrados em todos os cartórios do estado, o fundo poderá repassar uma verba aos cartórios que não atingirem a arrecadação mínima, que notadamente são os que apresentam condição e estrutura mais precárias.
Em harmonia com a Lei Federal dos Notários, os cartórios que passam a ser privatizados são: tabeliães de notas; tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; tabeliães de protesto de títulos; oficiais de registro de imóveis; oficiais de registro de títulos e documentos e civil das pessoas jurídicas; e oficiais de registro civil das pessoas naturais e de interdições de tutela.
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