Lula, os dragões e o poder dos
fracos
Por: Roberto DaMatta (antropólogo,
escritor, conferencista)
Um imperador
chinês adorava dragões. Colecionava suas imagens e os reverenciava. Os dragões,
que ocupavam o lugar mais alto na hierarquia dos animais na China e eram
associados ao próprio imperador – a palavra dragão em chinês produz o som do
trovão –, ficaram felizes quando, nas montanhas onde viviam exilados, souberam
que ele os admirava. Rompendo o confinamento, eles resolveram visitá-lo.
Desajeitados,
rastejaram, galoparam e voaram para o palácio imperial. Foram recebidos com
insultos. O imperador até tentou encarar a visita como uma cortesia. Mas, quando
se viu diante daqueles bichos escamosos e fedorentos, que, enquanto falavam,
provocavam labaredas que queimavam plantações, deixou de lado a admiração que
sentia e os expulsou do palácio.
Ouvi essa
história de um cientista político chinês, durante uma palestra numa universidade
americana.
Como se sabe,
disse com ironia o colega chinês, todo mundo ama e admira a democracia desde que
ela, como os dragões, permaneça nas montanhas.
Quando a
democracia chega cuspindo o fogo da liberdade – com seu poder de reduzir ricos e
pobres, fracos e fortes à igualdade perante seus poderes –, há em toda parte uma
forte reação. Hoje, os dragões são bons símbolos das confusões permanentes da
competição eleitoral e da igualdade de todos perante as leis, porque a vida numa
democracia liberal é tão complexa e difícil quanto a desses seres que, de
repente, podem botar fogo pela boca.
Como
domesticar os dragões no caso de países como o Brasil?
Aqui, eles
correspondem não ao ideal de democracia, mas a outra idealização: a enorme
diferença entre o que se diz e o que se faz com nossos companheiros e com nosso
partido quando chegamos ao poder.
Aí está o
mensalão, armado por aficionados desses monstros, que não me deixa mentir.
O dragão
pergunta: será que o voto deve ter o mesmo valor para todos? Se sabemos a
solução para os problemas do Brasil, não seria legítimo comprar votos e
políticos, e até mesmo partidos inteiros – para permanecer no poder resolvendo,
a nosso modo, os problemas do povo brasileiro?
Não se trata
de tomar partido, trata-se de condescender com a desonestidade como um meio para
permanecer no poder.
Lula, sem
sombra de dúvida, foi o político simbolicamente mais forte da história do
Brasil. Ele não precisava adorar dragões, porque dentro dele conviviam o dragão
da miséria, da fome, do abandono e da pobreza, com todos os seus terríveis
coadjuvantes. Jamais se viu um presidente ou líder político com tanto poder de
aglutinação simbólica como Lula. Ele atraía os ricos pela culpa e pelas novas
oportunidades de ganhar dinheiro com – e não contra – os trabalhadores
sindicalizados; era amado pelos subordinados e ressentidos; era incensado pelos
intelectuais – sobretudo os chegados a um despotismozinho inocente –, porque,
como Platão, supunham que ele poderia ser educado ou convertido; era idolatrado
pelos fanáticos pelo poder porque, com Lula, algo novo ocorreria com seus donos.
E, finalmente, Lula dragava na sua figura os cristãos porque, nascido no centro
da opressão, ele sofreu, mas não desistiu.
Sua fala
repleta de erros crassos de português e de imagens simplórias não era, como
pensavam os letrados, um demérito. Era o mais sincero testemunho de sua origem
popular, porque essa fala confirmava o “pobre” iletrado (e explorado) no papel
do presidente que pode tudo. Lula foi premiado com a Presidência por suas
virtudes e por algo que a teoria política burguesa dos Hobbes, Rousseaus, Lockes
e Mills jamais perceberam: aquilo que alguns antropólogos chamaram de “poder dos
fracos”.
O poder dos
miseráveis nas sociedades intransigentemente desiguais, como a nossa, que tem a
ilegítima legitimidade de transformar o assalto à mão armada em distribuição de
renda.
Esse poder
dos fracos é o velho poder das ciganas que vivem miseravelmente no presente, mas
predizem o futuro. Lula foi a imagem da redenção do Brasil pelo
Brasil.
Nem a
Revolução Francesa, nem a Russa, nem a Americana tiveram um ator com tais
atributos. Pois Lula é a metáfora viva do que uma democracia pode fazer e do que
só pode ser feito numa democracia construída por meio de uma imprensa livre e da
competição eleitoral.
Nas
revoluções que romperam as realezas e inauguraram a democracia como uma forma de
vida, esse dragão feio, imperfeito, inclassificável – porque é ave, réptil e é
também um mamífero –, não há nenhum líder como Lula. A Revolução Gloriosa e a
Francesa foram feitas por pensadores burgueses. Nem mesmo Mandela, negro e
advogado, se iguala a ele. Nenhum deles veio tão de baixo – nem mesmo na
Revolução Americana, onde se fundou a primeira sociedade civicamente igualitária
do planeta, como tão bem percebeu um deslumbrado Alexis de
Tocqueville.
Medir o que
Lula representa simbolicamente é mais fácil hoje porque o tempo e a vida – e,
mais que isso, a presença do petismo nas engrenagens paradoxais do poder –
revelaram, logo no primeiro governo, a impossibilidade de seguir à risca o
projeto ideológico de permanência, hoje em julgamento pelo Superior Tribunal
Federal.
Lula perdeu
parte de sua atração ideológica quando se filiou ao projeto brasileiro perene de
manter nossas desigualdades confiando ao Estado (não à sociedade) seu projeto de
revolução. E tome roubo e recursos públicos, e tome funcionalismo acima das
leis.
Está Lula
hoje, como um ex-presidente profissional que sabe como ninguém jogar com a
dramaticidade de sua trajetória e com os anseios messiânicos do povo brasileiro,
ainda desejoso de ter um dragão que tudo resolva?
É certo que
Lula tem um papel ímpar no processo político nacional. Mas também é seguro que
ele não goza mais aquela ausência de verniz que o cobria como um presidente
messias – um pobre governando os pobres.
A aura de
pureza e de inocência dos fracos e destituídos desmanchou-se diante da fieira de
roubalheiras que é parte de sua era.
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