Investigar a dívida pública
Prevista na Constituição de 1988, a auditoria poderia esclarecer qual a contrapartida e quem foram os beneficiários da dívida pública brasileira, que consome tantos recursos e alcança patamares altíssimos. Outros países da América do Sul já deram o exemplo e estão comprovando a ilegalidade desse endividamento.
Por Maria Lucia Fattorelli*
Em 1931 o presidente Getúlio Vargas determinou a realização de uma auditoria da dívida externa brasileira, depois de constatar que apenas 40% dos contratos estavam documentados. Não havia contabilidade regular, nem controle das remessas efetuadas ao exterior. Essa auditoria possibilitou a redução tanto do montante como do fluxo de pagamentos, permitindo a destinação de recursos para o início do processo de industrialização nacional, bem como para a implantação de direitos sociais.
Hoje, o Brasil paga aos detentores de títulos de sua dívida pública as mais elevadas taxas de juros do mundo. Isto inibe nosso desenvolvimento, a geração de empregos e o investimento. Até mesmo diante da atual crise financeira mundial, enquanto drásticas reduções nas taxas de juros são feitas em todo mundo, o Brasil continua praticando taxas altas, devido à necessidade de "rolar" uma dívida pública que alcança patamares altíssimos e que cresce em ritmo acelerado.
A subserviência às exigências do setor financeiro é uma realidade no Brasil e em muitos outros países da América Latina e do chamado Terceiro Mundo. Tal situação passa a ser questionada por vários dos novos governos latino-americanos, tendo à frente o Equador e, recentemente, contando com o engajamento de Paraguai, Venezuela e Bolívia.
Uma esperança também surge no Brasil com a recente criação da CPI da Dívida pela Câmara dos Deputados, cuja efetiva instalação e funcionamento muito se vinculam à mobilização da sociedade e à incisiva cobrança de transparência em relação a esse grande problema nacional que afeta a vida de todos, especialmente diante da crise financeira atual.
Sem pedir licença nem explicações a respeito de suas reais causas e responsáveis, instalou-se no mundo uma crise financeira que em poucas semanas exigiu a transferência de trilhões de dólares de Estados Nacionais para o "salvamento" de bancos privados – os mesmos que, durante os últimos anos, anunciaram lucros bilionários não compartilhados com a sociedade.
No Brasil, em 2007, o lucro dos bancos privados foi de R$ 56 bilhões, enquanto no mesmo ano o Banco Central amargou o prejuízo operacional de R$ 47 bilhões, arcados integralmente pelo Tesouro Nacional.
Esse resultado negativo do BC está relacionado às negociações da dívida brasileira: estrangeiros e também empresas e bancos brasileiros que se endividaram no exterior direcionaram, no momento em que o valor do dólar despencava, grandes somas de recursos para a compra dos títulos da dívida interna brasileira. Buscavam a remuneração mais vantajosa do mundo, representada pela combinação da valorização do real, juros elevados e isenção de impostos. O ganho real, em dólares, desses rentistas, foi de cerca de 30% no ano de 2007!
Essa modalidade de operação especulativa provocou, nos últimos anos, um aumento exponencial da dívida interna a um custo elevado para o Brasil, e possibilitou o acúmulo de reservas internacionais de cerca de US$ 200 bilhões – reservas que, em sua maior parte, estão empregadas em títulos da dívida norte-americana, que não rendem quase nada.
No momento em que a crise se instalou e o dólar voltou a subir, o movimento inverso de fuga de capitais e dificuldades na negociação de títulos começou a ocorrer, levando o Banco Central a realizar operações onerosas para o país, como ofertar taxas de juros que chegaram ao patamar de 18,5% em outubro de 2008(1)!
A razão desse disparate é o volume de compromissos relacionados ao endividamento público brasileiro, que tem absorvido a maior parte dos recursos orçamentários da União e também sacrificado estados e municípios.
Superávit primário
Por meio da elevada carga tributária que pesa sobre toda a sociedade, aliada a cortes de gastos e investimentos públicos, o Brasil tem obtido o significativo superávit primário de 4,25% do PIB(2). No entanto, esses recursos não têm sido suficientes para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. Resultado: parte da dívida é "rolada", ou seja, é paga mediante a emissão de novos títulos que precisam ser "absorvidos" pelo mercado, que, por sua vez, exige taxas cada vez mais elevadas e prazos cada vez mais curtos.
Esta é a armadilha em que se encontra o Brasil, submetido às exigências abusivas do setor financeiro. Enquanto os demais países efetuam ajustes para enfrentar a crise e promovem drásticas reduções das taxas de juros – que visam proteger sua atividade econômica e minorar o desemprego(3) – por causa da amarra da dívida, o Brasil, líder mundial em juros, está na contramão, mantendo há vários meses a taxa básica em 13, 75% e só agora reduzindo-a em 1%, em razão das inúmeras e recorrentes demandas advindas especialmente dos responsáveis pela economia real.
No ano de 2008, o pagamento dos compromissos com a dívida consumiu 46,5% de todos os gastos federais. Mesmo quando retiramos desse cálculo os gastos referentes à chamada "rolagem", os gastos com o endividamento chegam a 30,6% do orçamento da União. Essa sangria tem se repetido todos os anos. Estes são recursos que faltam a um país que enfrenta graves problemas humanos devido a carências em áreas sociais fundamentais, como saúde (que recebeu apenas 4,8%), educação (2,6%) e Reforma Agrária (0,3%), para mencionar só alguns exemplos.
Todos os setores nacionais foram afetados pela subtração de recursos para honrar os pagamentos de uma dívida que não se conhece, pois a auditoria prevista na Constituição Brasileira de 1988 nunca foi feita. Por isso ela é reclamada pelo movimento social da "Auditoria Cidadão da Dívida"(4).
Essa auditoria poderia esclarecer qual a contrapartida e quem foi o beneficiário dessa dívida pública que consome tantos recursos e alcança patamares altíssimos: a dívida externa já alcança a cifra de US$ 271 bilhçoes e a dívida interna já supera R$ 1,5 trilhão(5)!
Além das cifras astronômicas o processo de endividamento acentuado no período FHC, determinou uma série de condicionamentos à economia do Brasil, que seguiu a agenda imposta pelo FMI, merecendo destaque as privatizações, a liberdade de capitais, além de uma série de reformas de caráter neoliberal – previdência, trabalhista, sindical, universitária – todas visando reduzir a interferência do Estado na economia e "conquistar a confiança dos mercados".
Vários estudos da Auditoria Cidadã da Dívida já demonstraram que a gestão do endividamento trouxe danos às finanças do país, notadamente na transformação da dívida externa em dívida interna, no pagamento antecipado de dívida ao FMI (2005), no resgate de títulos Brady (2006) e de títulos com ágio no mercado secundário em 2007.
Impressionantes ilegalidades de acordos e contratos foram denunciadas, já em 1989, pelo Senador Severo Gomes, quando analisou cláusulas consideradas abusivas que renunciavam explicitamente à nossa soberania. O mesmo ocorre com a renúncia da denominada Cláusula de Ação Coletiva, que foi introduzida nos títulos da dívida externa brasileira desde 2003, sem autorização legal. Por isso é necessária a realização da auditoria prevista na Constituição.
Mudanças de paradigma
Mas outra história começa a ser escrita na América Latina. Em 2007 o presidente do Equador, Rafael Correa Delgado, criou mediante Decreto a Comissão Oficial para a Auditoria da Dívida Equatoriana (CAIC), cujo relatório recentemente divulgado revelou uma história de 30 anos de ilegalidade e ilegitimidades, levando à suspensão do pagamento dos juros do Bonos Global – face atual da dívida com a banca privada internacional.
Nessa esteira, o Paraguai já iniciou uma auditoria de sua dívida externa e a Venezuela e a Bolívia anunciaram, em novembro de 2008, sua intenção de também realizar processos de auditoria semelhantes ao equatoriano.
No Brasil, a recente criação da CPI da Dívida pela Câmara Federal, proposta pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP) e apoiada por mais de um terço dos parlamentares, representa um passo importante, pois é "destinada a investigar a dívida pública da União, Estados e Municípios, o pagamento de juros da mesma, os beneficiários destes pagamentos e o seu monumental impacto nas políticas sociais e no desenvolvimento sustentável do país".
O Equador liderou a reação contra os abusos do poder econômico na América Latina. Ousou erguer a cabeça e, mediante o Decreto nº 427, de julho de 2007, o presidente Rafael Correa Delgado criou o CAIC. Esta pode ser considerada uma das decisões mais importantes da história da América Latina nos últimos tempos, pois significa a retomada da soberania e a busca da verdade sobre o endividamento público, utilizando-se de instrumento técnicos, fundamentado em documentação, que permite a tomada de decisões.
A CAIC trabalhou cerca de um ano, realizando árdua busca e análise de documentos em arquivos de diversos órgãos públicos, investigando aspectos financeiros, econômicos, contábeis, jurídicos e também impactos sociais e ambientais.
O relatório técnico da auditoria apresentado em 2008 apontou e documentou inúmeras ilegalidades e ilegitimidades nos 30 anos analisados por cada uma das subcomissões que se dedicaram especificamente a cada tipo de endividamento:
- Multilateral (dívida externa contratada com FMI, Banco Mundial e outros organismos multilaterais);
- Bilateral (dívida entre o Equador e outros países ou bancos públicos de outros países);
- Comercial (dívida contratada com bancos privados internacionais) e
- Interna.
No equador, a auditoria provou que a cada renegociação eram impostas condições mais onerosas, marcadas por comissões diversas e taxas de juros elevadas
O acesso a documentos oficiais históricos revelou semelhanças incríveis entre o processo de endividamento equatoriano e o dos demais países endividados. No caso da dívida comercial, de cuja investigação participei, a dívida atual representada por títulos (Bonos Global) é resultado do endividamento agressivo iniciado no final da década de 70, durante a ditadura militar, majorado pela influência da elevação unilateral das taxas de juros pelo Federal Reserve a partir de 1979 e por onerosas renegociações ocorridas na década de 80, quando o Estado equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas; seguido de renúncia à prescrição dessa dívida em 1992 e sua transformação em títulos negociáveis denominados Bonos Brady, em 1995, emissões de Eurobonos e nova transformação em Bonos Global em 2000.
Essa dívida comercial não significou qualquer benefício ao país, pois representou, nos 30 anos analisados, uma transferência líquida de US$ 7,13 bilhões em favor dos bancos privados internacionais – cifra muito significativa para o tamanho da economia equatoriana, 20 vezes menor do que a brasileira(6). Apesar dessa transferência negativa, a dívida comercial aumentou de US$ 115,7 milhões em 1976 para US$ 4,2 bilhões em 2006.
A auditoria provou que a cada renegociação eram impostas condições cada vez mais onerosas, marcadas por comissões diversas e taxas de juros elevadas, sem levar em conta o valor de mercado da dívida. Na última grande troca de títulos, realizada no ano de 2000, chegaram a ser negociados títulos pré-pagos totalmente cobertos por garantias colaterais. E essa negociação era alardeada como um grande negócio para o país! Na verdade, a auditoria mostrou que foi um grande negócio para os bancos privados e para os rentistas.
Um dos aspectos mais relevantes, no caso da dívida equatoriana com os bancos privados internacionais, foi a comprovação de que o país sequer recebeu os recursos, pois as sucessivas renegociações realizadas a partir de 1983 se deram no exterior, em operações realizadas diretamente entre a própria banca privada internacional, sem ingresso de recursos no Equador. Ou seja, o Equador sofreu um verdadeiro calote durante anos, pagando por recursos que nunca recebeu.
Diante de inexistência de qualquer contrapartida dessa dívida, o sacrificado povo equatoriano está aplaudindo a decisão do presidente Rafael Correa de suspensão do pagamento dos juros dos Bonos Global 2012 e 2030. Essa decisão está sustentada pelo relatório da auditoria, que foi submetido às autoridades jurídicas do Equador – Secretaria Jurídica da Presidência da República, Controladoria Geral do Estado – e também a advogados internacionais. Os US$ 30 milhões que deixaram de ser pagos em novembro de 2008, a título de juros de uma dívida fictícia, em breve estarão se transformando em escolas, hospitais e benefícios ao povo equatoriano, prova de que a auditoria deu resultado.
Outra infâmia apurada durante os trabalhos de auditoria equatoriana foi a renúncia à prescrição da dívida comercial em 1992. De acordo com as leis de Nova York e Londres, à quais se submetiam os contratos firmados com a banca privada internacional, decorridos seis anos de não pagamento de uma dívida, esta se encontraria prescrita, isto é, anulada. Os bancos privados internacionais não impetraram nenhuma ação para receber essa dívida no prazo legal, provavelmente porque não possuíam prova da entrega dos recursos ao Equador. Absurdamente, as próprias autoridades equatorianas da época assinaram um ato unilateral denominado "Tolling Agreement", abrindo mão de direitos indisponíveis, como a renúncia ao direito de prescrição da dívida; de empreender qualquer ação em qualquer tribunal contra o convenio de imunidade soberana e renúncia ao foro equatoriano e ao seu domicílio no Equador. Ou seja, um ato nulo, sob todos os aspectos.
Entre outras constatações estarrecedoras está, por exemplo, a de que embora todos os contratos da dívida externa comercial estivessem submetidos às leis de Nova York e Londres, os títulos Brady, Global e Eurobonos não haviam sido registrados na SEC – Securities anda Exchange Commission dos EUA, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários no Brasil – tendo sido negociados na Bolsa de Luxemburgo em operações equiparadas as negociações privadas.
O endividamento tem sido um mecanismo de dominação e exploração, servindo também para fomentar a especulação financeira e beneficiar os bancos privados
É interessante ressaltar que o registro de títulos na SEC é uma exigência da Lei de Valores dos EUA, editada logo após a crise de 1929, que visa garantir a segurança dos títulos negociados no mercado financeiro e, consequentemente, sua credibilidade. Esse fato tem relação com a atual crise financeira mundial, pois uma das práticas realizadas pelos bancos privados internacionais, revelada como uma das causas da crise financeira, foi a realização de operações com os "derivativos tóxicos", isto é, títulos podres, sem lastro, conseqüência de recorrentes emissões de derivativos, burlando-se regras de controle estabelecidas na referida Lei de Valores.
Novas decisões enfrentam privilégios, que influenciam o cenário internacional. Tanto a auditoria oficial realizada no Equador como os trabalhos da auditoria cidadã brasileira demonstram que o endividamento tem sido um mecanismo de dominação e exploração, servindo também para fomentar a especulação financeira e beneficiar especialmente os bancos privados, mesmo atores envolvidos na crise financeira atual.
Os privilégios do setor financeiro verificados no processo de endividamento são impressionantes: remuneração elevada; isenção tributária; liberdade de movimentação de capitais; desregulamentação de controles e restrições; prioridades de pagamentos sobre os demais gastos, chegando-se ao ponto de criminalizar o administrador que não cumpre prioritariamente o pagamento dos encargos da dívida.
O privilégio que assistimos diante da crise econômica atual também foi impressionante: ante o reclamo do setor financeiro privado mundial, surgiram trilhões de dólares, injetados imediatamente nos bancos privados. O mundo não sabia da existência desse grande volume de recursos que foi utilizado instantaneamente para socorrer bancos, pois a regra geral era a impossibilidade de atender aos sérios e graves reclamos por quantias bem menores, requeridas para socorrer comunidades de seres humanos dos flagelos da fome, da miséria, da falta de assistência médica, saneamento, educação e até ante o reclamo de ambientalistas em todo o mundo sobre a necessidade de salvar o planeta e recuperar o meio ambiente, castigado pela ação predatória praticada contra a natureza.
Talvez essa crise financeira intimamente ligada ao endividamento público, seja uma oportunidade para escancarar a crise de valores que vivemos nos dias atuais.
Se alguma mudança importante já começaram a ocorrer, merecendo destaque a atitude soberana adotada pelo Equador, do lado dos credores também as mudanças já começaram a acontecer: recentemente, a Noruega reconheceu sua co-responsabilidade ao ter oferecido empréstimos ilegítimos a cinco países – Equador, Egito, Jamaica, Peru e Serra Leoa – e cancelou unilateral e incondicionalmente as dívidas remanescentes desses cinco países, mantendo-se firme em sua decisão apesar do repúdio do Clube de Paris.
Maria Lúcia Fatorelli é graduada em Administração e Ciências Contábeis. Auditora Fiscal da Receita Federal desde 1982, é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e membro do CAIC (Comisión para la Auditoria Integral de Crédito Público) criada pelo Presidente Rafael Correa em 2007.
Notas
1. www.stn,fazenda.gov.divida_publica/leiloes/downloads/resultados/banco_de_dados.xls, acesso no dia 24/10/2008.
2. Produto Interno Bruto – soma de todas as riquezas produzidas no país durante o período de um ano.
3. Nos Estados Unidos, a taxa de juros foi reduzida ao menor nível histórico de todos os tempos, chegando a 0,25% ao ano em dezembro de 2008. Na zona do Euro, a média é 2,5% a.a; no Japão, 0,3%; na China 5,5% e na Índia 7,5% a.a.
4. A Auditoria Cidadã da Dívida nasceu em abril de 2001 a partir da demanda gerada pelo Plebiscito da Dívida realizada em 2000, organizado por entidades da sociedade civil, principalmente a Rede Jubileu Sul em todo país. Mais de seis milhões de pessoas votaram, exigindo a realização da auditoria prevista no artigo 26 do ADCT da Constituição Federal. Esta iniciativa brasileira de realização de uma auditoria da dívida já está sendo seguida em vários países da América Latina, África e Ásia, também de forma cidadã. Em 2007, o governo do Equador instituiu uma Comissão oficial, o CAIC, para realizar a auditoria oficial da dívida equatoriana. Trata-se de um movimento aberto à participação social que vem cumprindo seus objetivos institucionais a partir do trabalho voluntário, conforme informações sobre eventos e publicações disponíveis na página www.divida-auditoriacidada.org.br.
5. A referência nunca é colocada em moeda nacional, pois trata-se de uma dívida que depende de variações de câmbio.
6. Fonte: HTTP://indexmundi.com/pt/equador/produto_interno_bruto_(pib).html
ESCLARECIMENTOS AOS SENHORES PARLAMENTARES
Sobre a participação de Maria Lucia Fattorelli Carneiro na Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana (CAIC)
A propósito da matéria "Uma ameaça de US$ 5 bilhões", veiculada pelo Jornal "O Globo" de domingo, dia 30 de novembro de 2008, que tratou de forma incorreta e difamatória minha participação na Comissão de Auditoria Integral da Dívida Equatoriana (CAIC), gerando polêmica manifestada em diversos pronunciamentos no Congresso Nacional, encaminho os seguintes esclarecimentos aos parlamentares brasileiros:
- A matéria em questão contém graves ofensas e falsas acusações pessoais diretas a esta servidora pública federal há 28 anos, exercendo há 26 anos o cargo de auditora-fiscal da Receita Federal do Brasil, cujo exercício funcional sempre foi primado pelo trabalho com dignidade, ética e verdade.
- Fui nomeada pelo Presidente Rafael Correa Delgado para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida Equatoriana (CAIC) devido à minha participação, como voluntária, na campanha da Auditoria Cidadã da Dívida desde o ano 2000, movimento social que reivindica o cumprimento da Constituição Federal Brasileira, cujo art. 26 do ADCT determina a realização de uma auditoria da dívida externa.
- A CAIC foi instituída mediante o Decreto Executivo nº 472, assinado pelo Presidente Rafael Correa em 9 de julho de 2007. Inicialmente, estive no Equador contribuindo com os trabalhos da CAIC durante meus períodos de férias regulamentares: de 5 a 13 de outubro de 2007, e 27 de janeiro a 23 de fevereiro de 2008.
Posteriormente, atendendo ao pedido formulado pelo governo equatoriano, e pela Embaixada do Equador no Brasil, o governo brasileiro autorizou meu afastamento do País, mediante atos administrativos que cumpriram todas as exigências legais e obedeceram aos princípios da administração pública, inclusive o da transparência, com publicação no Diário Oficial da União, respectivamente em 10/04/2008 e 25/07/2008. Em virtude dessa autorização legal trabalhei para a CAIC a partir de 14 de abril de 2008, tendo concluído os trabalhos em 26 de setembro de 2008. Em 29 de setembro de 2008 me apresentei ao trabalho na Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento em Brasília.
Cabe destacar que a cessão de servidores públicos para outros países é um procedimento legal, de praxe no âmbito das relações de cooperação internacional e obedece à legislação de regência, que advém do princípio estabelecido no inciso IX e no parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal Brasileira:
Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
...
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
...
Parágrafo Único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
- Minha cessão ao governo do Equador foi autorizada com base no art. 1º, inciso IV, do Decreto nº 1.387/95, que trata do afastamento de servidores públicos do País, regulamentando o art. 95 da Lei 8.112/90.
A modalidade autorizada - "com ônus limitado" - significou que o governo brasileiro não arcou com gastos relacionados a diárias, passagens ou quaisquer vantagens, mantendo unicamente meus vencimentos, direito assegurado a qualquer servidor autorizado a se afastar do País, nos casos elencados no precitado Decreto 1387/95. Assim, não cabe dizer "e até pagou salário", como fez a matéria de "O Globo", pois este é o procedimento legal e de praxe.
- Considerando o grande volume de documentos a serem analisados pela CAIC, uma vez que a auditoria determinada pelo Decreto nº 472 compreendeu 30 (trinta) anos do processo de endividamento público equatoriano, desde 1976 até 2006, a Comissão foi organizada em subcomissões, dedicadas respectivamente à auditoria das dívidas Multilateral, Bilateral, Comercial e Interna.
Trabalhei exclusivamente na "Subcomissão de Dívida Comercial da CAIC", cuja atribuição era auditar a dívida externa contratada com bancos privados internacionais (em especial Lloyds Bank, Citibank, JPMorgan, Chase Manhattan Bank, Shearson Loeb Rhoades).
Por sua vez, os financiamentos relacionados ao BNDES faziam parte do trabalho da "Subcomissão de Dívida Bilateral" da CAIC, da qual não participei. A Dívida Bilateral corresponde à dívida contratada com outros países ou com bancos públicos de outros países.
Portanto, o trabalho que realizei no Equador não teve qualquer relação com a maliciosa conexão feita pela matéria do jornal "O Globo", resultado de ardilosa montagem que visou a promover criminosa DIFAMAÇÃO PÚBLICA. O jornal estampa minha imagem, cita meu nome 10 (DEZ) vezes, além de uma série de outras referências à minha pessoa como servidora, auditora e funcionária, inventando uma correlação absurda entre a autorização do governo brasileiro relacionada ao meu afastamento do país, o caso Odebrecht e a "preparação de um calote", fato inexistente, pois nunca ocorreu o tal calote alardeado na matéria.
O jornalista autor da matéria, José Casado, tinha conhecimento do fato de que eu não atuei na Subcomissão de Dívida Bilateral, pois durante sua entrevista telefônica ele me perguntou vários detalhes relacionados à Odebrecht/BNDES e eu informei a ele que não possuía aquelas informações, pois meu trabalho havia se restringido à Comissão de Dívida Comercial da CAIC. O jornalista ignorou estes esclarecimentos e publicou matéria altamente tendenciosa e difamatória, por meio da qual faz justamente a conexão que sabia não existir.
A realização de auditoria é um procedimento legítimo e necessário para garantir transparência e segurança às contas públicas. A falta ou a negação da auditoria da dívida é que deveria ser tida como situação esdrúxula e indefensável do ponto de vista legal e moral, por ser adversa ao interesse público. A realização da auditoria da dívida externa está inclusive prevista na Constituição Federal de 1988, sendo absurda a vinculação da realização de auditoria à "preparação de um
calote", como consta da matéria.
Ao publicar que "O governo brasileiro emprestou mão-de-obra, pagou o custo e, assim, ajudou o Equador a preparar o calote em uma dívida com o BNDES, avalizada pelo Tesouro Nacional" o jornal "O Globo" distorceu os fatos, responsabilizando o próprio governo brasileiro pela preparação do factóide "calote". Também desqualificou o ato soberano e responsável do Equador de realizar uma auditoria de sua dívida pública, desmerecendo ainda o árduo trabalho técnico que realizei no Equador, o qual exigiu muita dedicação e sacrifícios, tudo enfrentando para bem representar o País no exterior e honrar a oportunidade de contribuir para a aproximação das nações latino americanas.
Acima de tudo, essa matéria investiu contra a integração latino americana e atentou contra a Constituição Federal Brasileira, pois, paradoxalmente, sem aprofundar na análise do Caso Odebrecht, a matéria trata como grande "ameaça" uma demanda de caráter meramente comercial que envolve atuação dessa empresa privada no Equador, cuja solução deve ser buscada nos fóruns competentes, e de forma alguma pode vir a afetar as relações bilaterais entre o Brasil e o Equador.
A desqualificação do trabalho de auditoria da CAIC visou desviar o foco das graves irregularidades, ilegalidades e ilegitimidades encontradas pela Comissão de Auditoria Equatoriana, que durante os trabalhos identificou inúmeros fatos históricos idênticos aos verificados em processos de endividamento de outros países da América Latina, cuja integração é essencial para a defesa dos interesses das nações e povos do nosso continente.
A montagem evidenciada na escandalosa matéria do jornal "O Globo", concatenando repetidamente uma inventada ligação entre minha designação para a CAIC, o caso Odebrecht e o factóide "calote" provocou um ambiente de polêmica em todo o País, mobilizando autoridades, entidades, trabalhadores, consumindo tempo valioso de todos e também recursos, ante o clima de verdadeiro terrorismo gerado a partir das graves acusações e ilações construídas pela alarmante matéria "Uma ameaça de US$ 5 bilhões".
É preciso esclarecer cabalmente que fui vítima de jornalismo irresponsável; que fui legalmente cedida ao Equador com base em atos fundamentados em preceitos legais e constitucionais; que não "ajudei a preparar calote" algum; que não participei da investigação do caso Odebrecht; que realizei trabalho técnico na investigação do endividamento com bancos privados, cujo aprendizado pode ter relevância especialmente para o Brasil, que confio um dia cumprirá a Constituição Federal e realizará a auditoria da dívida pública.
Além disso, nunca fui "voluntária de ONG" como diz a matéria, pois sempre atuei como voluntária de movimentos sociais e não de "ONG"; não criei entidade denominada "Dívida Cidadã", como erra a matéria, pois o movimento da "Auditoria Cidadã da Dívida" foi fundado por dezenas de entidades e pessoas em respeito aos mais de seis milhões de votos colhidos no Plebiscito da Dívida realizado no ano 2000 (www.divida-auditoriacidada.org.br); o movimento da "Auditoria Cidadã da Dívida" é apartidário, independente, e aberto à participação de todos os cidadãos que se incomodam com as injustiças provocadas pelo processo de endividamento brasileiro e que exigem o cumprimento da Constituição Federal de 1988; não escrevi livro sobre o assunto da dívida, apenas organizei e apresentei o livro "Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania", em janeiro de 2003, cedendo todos os direitos para a Rede Jubileu Sul Brasil.
Esperando ter esclarecido as dúvidas que têm sido levantadas em pronunciamentos dos senhores parlamentares, coloco-me à inteira disposição de V. Exas, especialmente diante da necessidade de conhecer e divulgar os importantes resultados da auditoria equatoriana, de aprofundar a discussão sobre o endividamento público brasileiro no atual cenário de crise financeira global, e especialmente de promover o fortalecimento da integração dos países da América Latina.
Brasília, 4 de dezembro de 2008.
Maria Lucia Fattorelli Carneiro
Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil e
Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida
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