O Grito/Edvard Munch
Em vigor há um mês, a nova lei do estupro (número 12.015) foi recebida sob aplausos generalizados. Festejaram-se sobretudo dois pontos:

1. Aumento em até 50% das penas nos casos graves –quando o estupro é seguido de lesão corporal, morte, gravidez ou transmissão de doença à vítima.

2. Aprimoramento da legislação no que diz respeito aos crimes sexuais praticados contra crianças e adolesentes.

Há na nova lei, porém, um defeito que passou despercebido. Foi identificado por Artur Gueiros, procurador Regional da República, lotado no Rio de Janeiro.

Em representação encaminhada ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel, Gueiros refere-se ao defeito como “grave equívoco do legislador”.

O “equívoco” foi introduzido, segundo ele, no artigo 225 do Código Penal, cuja redação foi modificada pela nova lei.

Antes, os casos mais graves de estupro eram considerados “crimes de ação penal pública incondicionada”.

Siginifica dizer que, uma vez identificado o criminoso, o Ministério Público podia processá-lo independentemente de manifestação da vítima.

Com a nova redação, esse tipo de delito passou a ser definido como crime de “ação pública condicionada à representação”.

Ou seja, o Ministério Público só pode levar o criminoso às barras dos tribunais se houver uma representação da vítima ou de pessoa responsável por ela.

A nova lei dispensou a representação apenas nos casos em que a vítima for menor de 18 anos ou for considerada “pessoa vulnerável”.

A novidade pode resultar na impunidade dos acusados de “estupro qualificado” –os mais graves— cujos processos estão pendentes de julgamento.

Por quê? Quando uma nova lei introduz no ordenamento jurídico regras que socorrem os acusados, o benefício retroage no tempo, em benefício do réu.

No caso específico da lei do estupro, a continuidade dos processos já abertos passou a depender da anuência da vítima ou de seu representante.

O direito à “representação” é regido pelo artigo 103 do Código Penal. Dá à vítima prazo de seis meses para requerer a ação, a contar da data da identificação do criminoso.

Perdido esse prazo, o crime é alcançado pela “decadência”, extinguindo-se a possibilidade de abertura de processo e consequente punição.

Para os estupradores que aguardam julgamento, o prazo de decadência será contado a partir do dia em que passou a vigorar a nova lei do estupro.

Foi publicada em 10 de agosto de 2009. Contando-se os seis meses previstos no Código Penal, a decadência se dará em 10 de fevereiro de 2010.

A prevalecer o entendimento de Gueiros, para evitar a impunidade, o Ministério Público teria de localizar as vítimas e instá-las a protocolar representações.

Nos casos em que a vítima, além de estuprada, foi assassinada, seria necessário localizar um familiar que se dispusesse a representar contra o criminoso.

É algo que o procurador Gueiros considera “impraticável”. Por isso ecaminhou a representação ao procurador-geral da República.

No texto, pede que o Ministério Público protocole no STF, “em caráter de urgência”, uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra a nova lei.

Invoca o artigo 1º da Constituição, que inclui entre os fundamentos da República Federativa do Brasil o respeito à “dignidade da pessoa humana”.

Gueiros escreve que, ao exigir “a formalização de representação para a propositura de ação penal” a nova lei “beneficiou os acusados da prática de estupro (e atentado violento ao pudor) qualificados pelas lesões graves [...]”.

Acrescenta: “Ao beneficiar o sujeito ativo do delito, prejudicou, em sentido inverso, o bem jurídico dignidade da pessoa humana, titularizado pelo sujeito passivo do delito sexual, garantido pela Constituição Federal [...]”.

A representação de Gueiros foi à mesa da subprocurador-geral da República Déborah Duprat. É ela quem vai decidir se cabe recurso ao STF contra a nova lei.

Gueiros esteve com Déborah, em Brasília. Explicou a ela suas apreensões. Recolheu da audiência a impressão de que o recurso ao Supremo será formulado.

Dispersos pelo país, os estupradores que aguardam julgamento não foram contabilizados. Sabe-se, porém, que são contados às centenas.

Daí o pedido de Gueiros para que a Procuradoria aja “em caráter de urgência”, sob pena de prevalecer a impunidade em massa.

Escrito por Josias de Souza - Folha de São Paulo