Grupo especial da PGFN faz frente a grandes bancas
Grandes escritórios de advocacia não se arriscam em teses tributárias sem antes estudá-las meses a fio. Hoje, novas ideias não ficam em segredo sequer nas bancas, já que grupos que reúnem as maiores, como o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), são verdadeiros fóruns aprimoradores de argumentos. Com os novos institutos de recursos representativos nos tribunais superiores, uma ação pode ser decisiva para todos. Só que toda essa estrutura torna a batalha judicial desigual para os procuradores do fisco, que mal têm tempo para atender aos prazos processuais.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional começa a virar esse jogo. Aos poucos, grupos de pensadores nas unidades regionais do órgão em todo o país, dedicados exclusivamente a estudar teses que possam causar estragos na arrecadação, começam a se consolidar. Se depender dessa tropa de elite, não será mais tão fácil para os advogados fazer passar ações favoráveis aos contribuintes tanto no Judiciário quanto no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais da Receita Federal.
Aos poucos, aumenta o número de procuradores dedicados à tarefa de observar, desde o primeiro grau, liminares e decisões que possam comprometer quantias expressivas, ou gerar volume expressivo de ações judiciais. Em Brasília, pelo menos 24 escolhidos acompanham diariamente as sessões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Carf, atentos a qualquer decisão que possa causar euforia nos tributaristas.
As chamadas Divisões de Acompanhamento Especial das Procuradorias Regionais da Fazenda Nacional não são exatamente uma novidade. Normativamente, elas existem desde o fim de 2005, quando a Portaria 1.094 estabeleceu os critérios das ações a serem submetidas ao controle diferenciado. Porém, as últimas vitórias do fisco em Brasília atraíram a atenção da PGFN para esse tipo de estratégia. No ano passado, uma mudança no Regimento Interno do órgão unificou as defesas de primeira e segunda instância, e instalou oficialmente as novas divisões.
Foi assim que o órgão conseguiu reverter a maior causa tributária já julgada no país até agora. A decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu o fim do crédito-prêmio do IPI para os exportadores em 1990, mantendo bilhões de reais nos cofres públicos, foi uma reversão de jurisprudência que começou no Superior Tribunal de Justiça devido à atuação em conjunto das procuradorias. “Houve apoio de teses nascidas nas procuradorias da 1ª, 4ª e 5ª Regiões”, lembra Fabrício da Soller, procurador-geral adjunto de consultoria e contencioso tributário da PGFN. Antes do acórdão do Supremo, do ano passado, decisões favoráveis aos contribuintes davam conta de que o benefício, criado em 1969 para estimular as exportações, ainda vigia, mesmo não tendo sido confirmado em lei depois da promulgação da Constituição Federal.
A tese vencedora do fisco, segundo a qual benefícios setoriais teriam de ser confirmadas por lei dois anos depois da Constituição — como determina o artigo 41, parágrafo 1º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias —, foi o primeiro exemplo de tese discutida em conjunto pelas procuradorias, segundo Fabrício da Soller.
“Quem acordou primeiro para o tema foram as regionais, em 2002”, conta, lembrando que, ao se depararem com os casos nos Tribunais Regionais Federais, os procuradores passaram a avisar uns aos outros. O estudo aprofundado do caso levou, dois anos depois, à primeira vitória no STJ. A 1ª Turma da corte entendeu que o benefício havia sido extinto em 1983, devido a uma sequência de decretos que acabou com a benesse. No fim, o STF acabou não ficando nem com a solução radical do STJ, do fim em 1983, nem com a dos contribuintes, de que o crédito ainda existia.
No Rio, o acompanhamento da divisão especial local conseguiu recentemente uma vitória que causa calafrios nos escritórios de advocacia que conseguiram escapar da Cofins com decisões transitadas em julgado. A Procuradoria Regional da Fazenda Nacional obteve, em agosto, liminar que obrigou o escritório Dumans e Advogados a recolher o tributo mesmo tendo a seu favor uma decisão definitiva do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Ao receber um pedido de restituição dos valores pagos feito pelo escritório, a Receita Federal encaminhou o caso à Procuradoria, que viu uma brecha para reverter a decisão. Segundo o órgão, a Justiça não poderia conceder isenção ad aeternum, mas, no máximo, negar a revogação do benefício feita pela Lei 9.430/1996 — o que deixava de fora leis posteriores que restituíram a cobrança. Em 2008, o Supremo declarou a revogação perfeitamente constitucional, argumento usado pela PFN.
“Hoje, a Procuradoria não perde mais porque atua com inteligência”, diz o procurador-chefe da defesa da Procuradoria-Regional da Fazenda na 2ª Região,Marcus Abraham. “No passado, era uma festa para os grandes escritórios.”
Em junho, o mesmo grupo conseguia transferir uma dívida tributária da Varig S/A a uma de suas sucessoras, a VRG Linhas Aéreas S/A. Esta última foi a herdeira da “parte boa” da Varig, cujo processo de recuperação judicial dividiu a empresa em duas: uma com o ativo, e outra com o passivo. Por esse motivo, a VRG não poderia, segundo decisão do TRF-2, ser considerada uma mera unidade produtiva isolada e escapar da sucessão tributária.
Também foi o núcleo especial quem obteve, no TRF-2, vitória unânime que confirmou que instituições financeiras podem sim ser cobradas com alíquota maior de CSLL sobre seus lucros. Pelo trabalho do grupo, o tribunal também tem considerado devidos a Cofins e o PIS não só sobre o faturamento da atividade principal das empresas, como também sobre suas receitas financeiras.
Entre as vitórias que os procuradores fluminenses colecionam estão ainda decisões que mantêm a preferência de penhora sobre dinheiro em vez de fiança bancária. Com isso, valores bloqueados via BacenJud, reservados pelas empresas para distribuição de dividendos, ficam com o fisco até o pagamento ou a negociação das dívidas.
O caso mais emblemático da atuação da Divisão de Acompanhamento Especial no Rio é do fechamento da indústria de cigarros American Virginia. A PGFN conseguiu convencer a Justiça de que uma empresa pode ser fechada se dever ao fisco. Embora o Supremo Tribunal Federal sempre tivesse decidido o contrário, a situação característica da empresa acabou inaugurando a jurisprudência a esse respeito.
Segundo a decisão liminar, como as indústrias tabagistas operam sob regime especial concedido pelo Estado — uma cara tolerância à atividade que causa danos à saúde da população, cobrada com altíssima carga de impostos —, a Receita pode cancelar o regime e, com isso, impedir o funcionamento da empresa.
O caso, julgado na Ação Cautelar 1.657, ainda não teve o mérito analisado. A empresa voltou a funcionar no início do ano, ao optar pelo parcelamento, via Refis, de R$ 1 bilhão em dívidas de IPI, mas o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo, cancelou a reabertura autorizada em primeiro grau. O imposto deveria ter sido pago por substituição tributária. “Outras empresas do setor já foram fechadas pela Receita”, afirma o procurador-regional da Fazenda Nacional no Rio, Paulo César Negrão de Lacerda.
Ação preventiva
Diferentemente do grupo de procuradores dedicado a acompanhar os grandes devedores da PGFN, que atuam “no ataque”, segundo da Soller, as divisões de acompanhamento especial são dedicadas à defesa. Estão na mira causas que envolvam valores expressivos ou que tenham potencial de gerar uma avalanche de ações judiciais dos contribuintes. Esses critérios variam de região para região, já que um valor considerado expressivo para uma procuradoria pode não ser tanto assim para outra, como explica Paulo César Negrão. “Um caso que envolva fraude ou tenha grande repercussão tem acompanhamento diferenciado”, diz, “assim como uma pequena empresa que consiga liminar com uma tese nova”.
Devido ao potencial “destrutivo”, o grupo de grandes devedores da PGFN também está sempre sob os olhares desses procuradores, afirma o procurador-chefe da defesa da PRFN-2, Marcus Abraham. “Não vou deixar passar um processo de execução contra a Varig, devido à notoriedade do assunto”, exemplifica. Segundo ele, processos que estão na mídia também são alvos certos, assim como causas que envolvam mais de R$ 10 milhões.
“As teses chegam mais bem defendidas nos tribunais superiores”, explica da Soller para justificar o trabalho. “Quando elas perduram durante muito tempo a favor dos contribuintes, o fisco, mesmo ganhando no final, não consegue cobrar os anos que ficaram sem recolhimento.” Segundo ele, por meio de uma lista institucional de e-mails, as novas teses hoje são informadas rapidamente à cúpula em Brasília e aos procuradores regionais, que têm tempo para começar a criar as defesas.
É o que tem ocorrido, por exemplo, em relação às decisões que isentam as empresas de recolher a contribuição previdenciária com base nas variações do Fator Previdenciário de Prevenção, o FAP. Desde que a Previdência Social criou o novo cálculo, que pode tanto majorar quanto reduzir o valor das contribuições com base no número de acidentes registrados pelas empresas, diversas liminares e sentenças têm pipocado em todo o Brasil livrando os contribuintes de recolher pelo novo método devido à subjetividade do cálculo. Da Soller avisa, no entanto, que a PGFN já se equipou com um “guarda-chuva” de argumentos divulgados a todas as regionais para reverter as decisões e evitar novas liminares.
Principais ameaças
É a jurisprudência, que deveria sedimentar as disputas, a principal responsável pelas novas teses que têm surgido nos escritórios de advocacia, na opinião de da Soller. Saudosista das antigas criações dos grandes tributaristas, ele afirma que a inconstância das cortes superiores é que tem servido de insumo para novas ações. “O ICMS na base de cálculo da Cofins era uma discussão morta, até que o STF aceitou que a matéria tinha fundo constitucional”, diz. “Isso acabou inundando o Judiciário de ações.”
O julgamento do Supremo sobre o fim do Funrural é outro exemplo. “Nossa regional no Sul tem relatado uma chuva de ações individuais e coletivas depois da decisão”, diz o procurador adjunto, que conta ter promovido, na última semana, uma videoconferência sobre o assunto com as cinco procuradorias regionais. Em fevereiro, a corte declarou inconstitucional a contribuição, que incide sobre o faturamento dos produtores rurais pessoas físicas, e é revertida para o pagamento de benefícios a trabalhadores do campo. O tributo era repassado ao fisco pelos frigoríficos, adquirentes da produção agrícola e pecuarista, pelo sistema de substituição tributária. Os produtores, verdadeiros tributados, sofriam o desconto quando recebiam dos adquirentes. A decisão valerá até que uma legislação nova, com base na Emenda Constitucional 20/1998 — que modifica o sistema de previdência social —, institua a contribuição.
Outra tese que desafia os grupos é a alegação de comerciantes sob o regime do lucro real de que as despesas com valores pagos às administradoras de cartões de crédito e débito são dedutíveis da base de cálculo do PIS e da Cofins. Em março, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, do TRF da 1ª Região, concedeu tutela antecipada à rede de lojas Magazine Luiza, permitindo que os gastos sejam abatidos da base tributável das contribuições não cumulativas, por classificá-los como insumos. Em agosto, o primeiro caso foi relatado no Rio por um procurador que atua na linha de frente da primeira instância. A PGFN, no entanto, já diz ter aprimorado a tese defensiva e a encaminhado a Brasília, que a dividiu com todas as procuradorias.
É na tributação de lucros auferidos no exterior por empresas controladoras e por coligadas brasileiras que a PGFN vai gastar seus esforços nos próximos meses. Segundo Fabrício da Soller, essa é a causa de maior impacto hoje em discussão. “É um tema de bilhões de reais, que envolve empresas que se valem de controladas no exterior para pagar menos tributos”, diz.
O tema também foi apresentado aos procuradores das cinco regiões na videoconferência do dia 12 de agosto, organizada pela PGFN a partir de Brasília. O caso ainda não teve definição do Supremo Tribunal Federal, mas já contou com voto favorável ao fisco, dado pela ministra Ellen Gracie, relatora da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588. Segundo a ministra, a Receita pode cobrar IRPJ e CSLL sobre lucros ganhos no exterior por controladas e coligadas a empresas brasileiras.
Quartel-general
O funcionamento dessa central de inteligência deve melhorar com a criação de um núcleo controlador em Brasília, ao qual as cinco divisões de acompanhamento especial se reportarão e submeterão as novas teses. A nova central deve começar a funcionar até o fim de setembro, informa o procurador-geral adjunto, mas não com força total. A intenção era que dez integrantes formassem o grupo, mas, devido à falta de contingente, ele terá de trabalhar com apenas três, “por enquanto”, espera da Soller. “Não dá para dar conta de todas ideias que surgem no Brasil com esse número de procuradores, mas, com o tempo, vamos conseguir convencer as pessoas de que é necessário investir nisso.”
Em Brasília, a PGFN trabalha com dez procuradores destacados para acompanhar os julgamentos administrativos no Carf, outros dez no Supremo Tribunal Federal, e mais quatro nas duas turmas tributárias do STJ, bem como nas votações da 1ª Seção e da Corte Especial. Segundo da Soller, a média em cada divisão especial no país é de quatro procuradores.
A maior delas está no Rio, com dez, dos quais sete são mulheres. Esse tamanho, no entanto, só foi alcançado há um ano. “Há dois anos, éramos apenas o Paulo César [Negrão, chefe da regional] e eu”, diz o chefe da defesa do órgão, Marcus Abraham. Segundo ele, o número de demandas novas está estabilizado, pelo que o grupo deve recrutar, no máximo, mais dois novos componentes entre os 40 procuradores restantes na unidade. “Consigo hoje colocar um procurador em quase todas as sessões do TRF para acompanhar”, garante. “Em 90% dos casos que demandam sustentação na corte, a PGFN faz.”
Segundo Negrão, os integrantes são selecionados a dedo pela experiência, preparo acadêmico e resultados positivos no dia a dia. “Os membros devem ter grau de combatividade elevado e boa interação com a Receita Federal e o Ministério Público”, diz. A formação atual da divisão responsável pelo TRF-2, segundo ele, conta com procuradores com, no mínimo, pós-graduação ou mestrado. Porém, “às vezes, eles podem não ter interesse acadêmico, mas ser grandes advogados, ter o dom da palavra”. Mesmo assim, há rodízio na função. “Tem gente que se cansa por ter de trabalhar nos fins de semana, ou até tarde durante a semana. A vida é mais parecida com a de um advogado privado.”
ALESSANDRO CRISTO é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2010.
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