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quarta-feira, 24 de março de 2010

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. SUA HISTÓRIA E OBJETIVOS


O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. SUA HISTÓRIA E OBJETIVOS

Há tempos que desejava escrever esse breve comentário sobre o duplo grau de jurisdição, seu registro histórico e sobre a função dessa garantia em um estado democrático de direito.
Encontrei um registro histórico dos mais belos, no livro mais que especial, que nos educa para a vida e é essencial para aqueles que lidam com o Direito.
O registro histórico primário que se tem notícia e mais antigo está contido no II Livro das Crônicas dos reis de Israel, cap. 19, a partir do verso 4, do chamado Velho Testamento, e possui data em torno de 800 anos antes de Cristo.
Aconselhamos a leitura, para quem desejar conferir, da versão bíblica revista e atualizada (RA), pois está em conformidade com a penúltima reforma ortográfica, a de 1975, derivada do acordo entre Brasil e Portugal, contendo um linguajar mais contemporâneo. Informo ainda que a versão a que me refiro é a chamada versão protestante.
O texto está consignado abaixo e peço a atenção para leitura dos parágrafos destacados em azul.
Poucos autores, seja pela razão do desconhecimento, seja por terem ojeriza ao Livro Sagrado, não fazem citação aos textos bíblicos como referência para o Direito em seus trabalhos acadêmicos. Exceção, de memória, ao ilustre Goffredo Telles Júnior(1), recentemente falecido. Uma pena...
Considerando que Montesquieu somente pôde escrever seu "Espírito das Leis" após casar-se com uma mulher rica, Jeanne Lartigue, protestante, passando então a receber ao sobrenome e a ser o Barão de Montesquieu, pois, apesar de ter estudado junto ao Clero, como somente era possível antes da reforma protestante, sua formação com influência iluminista já o fazia ferrenho crítico do absolutismo e do clero católico, ao passo em que pôde identificar nas Escrituras o exemplo da administração do estado sob a regência da lei e com divisão do poder, cujas personagens bíblicas são: o rei (executivo e com função de juiz), o corpo de sacerdotes (com função de legislador e de judicatura), e o profeta, que funcionava como o poder moderador.
Os juristas alemães afirmam que Israel é a primeira nação da história humana que possuía uma Constituição, já conhecia e convivia com o Dir. Constitucional. É o primeiro estado constitucional da história.
É verdade. Os mandamentos dados a Moisés, que não se limitaram aos conhecidos 10 mandamentos(2), são na realidade uma Constituição, pois nos textos da chamada "Torá", como os israelitas chamam o livro da lei, no conjunto de livros que conhecemos como Pentateuco, que é a reunião dos 5 primeiros livros da Bíblia(3), encontramos regras sobre Dir. do Estado, Dir. Financeiro, incluindo o embrião do imposto de renda: o dízimo, Dir. Civil (casamento, divórcio, contratos, juros), Dir. Penal, Dir. Trabalho, Dir. Previdenciário e Assistência Social, da Guerra, Dir. Sanitário, Relações Exteriores, dentre outros.
É um deleite encontrar na Bíblia as referências que ainda embasam o Direito moderno, especialmente nas questões dos direitos humanos. Melhor dizendo, o avanço de hoje tem por nascedouro os preceitos bíblicos.
Em avanço quanto a esta introdução, passemos à leitura do registro contido no II Livro das Crônicas quanto ao duplo grau de jurisdição, e mais, a divisão das competências em razão da matéria, verbis:
II Livro das Crônicas, cap. 19, vers. 4 e seguintes:
"Nomeação dos juízes
4 - Habitou, pois, Josafá em Jerusalém; e tornou a passar pelo povo desde Berseba até a região montanhosa de Efraim, e fez com que tornassem ao Senhor, Deus de seus pais.
5 - E estabeleceu juízes no país, em todas as cidades fortificadas, de cidade em cidade.
6 - E disse aos juízes: Vede o que fazeis, porque não julgais da parte do homem, e sim da parte do Senhor, e no julgardes Ele estará convosco.
7 - Agora, pois, seja o temor do Senhor convosco; tomai cuidado e fazei-o, porque não há no Senhor nosso Deus injustiça e nem parcialidade, nem aceita Ele suborno.
8 – Também, depois de terem voltado para Jerusalém, estabeleceu aí Josafá alguns dos levitas e dos sacerdotes, e dos chefes das famílias de Israel para julgarem da parte do Senhor e decidirem as sentenças contestadas.
9 - E deu-lhes ordem, dizendo: Assim andai no temor do Senhor, com fidelidade e inteireza de coração.
10 – Toda vez que vier a vós outros sentença contestada de vossos irmãos que habitam nas suas cidades: entre sangue e sangue, entre lei e mandamento, entre estatutos e juízos; admoestai-os, que não se façam culpados para com o Senhor, para que não venha grande ira sobre vós e sobre vossos irmãos. Fazei assim e não vos tornareis culpados.
11 - E eis que Amarias, o sumo sacerdote, presidirá nas coisas que dizem respeito ao Senhor; e Zebadias, filho de Ismael, principal da casa de Judá, nas que dizem respeito ao rei. Também os levitas serão oficiais à vossa disposição. Sede fortes no cumprimento disso, e o Senhor será com os bons." (Sublinhamos).

Observem que no verso 5 do texto o rei estabelece juízes nas cidades mais importantes para o reino, as cidades fortificadas, cujo objetivo era a defesa dos invasores.
Após realizar a campanha administrativa pelas cidades, o rei retorna a Jerusalém e como conclusão da reforma administrativa, estabelece um tribunal (verso 8), indicando os levitas, sacerdotes e principais (príncipes) das famílias para decidirem acerca das sentenças contestadas.
Encontramos aí, de forma subentendida, a indicação do registro estatal dos atos, a leitura e o estudo, a escrita, o procedimento, o potencial para desenvolvimento de um país.
Que significa o modelo informado? O rei compôs um tribunal para re-decidir sobre as sentenças proferidas pelos juízes estabelecidos nas cidades fortificadas, ou seja, trata-se do recurso, da instalação do duplo grau de jurisdição, da instância de 2º grau.
O verso 10 do texto indica quais seriam as matérias possíveis quanto a competência do tribunal estabelecido em Jerusalém: entre sangue e sangue, quer dizer matérias de Dir. Civil e Penal (contratos, compra e venda, homicídio, legítima defesa, vingança, lesões, acidentes, etc.); acerca dos mandamentos previstos na Lei (Torá) e mandamentos decorrentes (interpretações e jurisprudência, que compreendem o livro chamado de Talmude); e entre leis emanadas do próprio reinado, atos do executivo, indicando-nos o embrião do Dir. Administrativo, Fiscal, etc.
O verso 11 é ainda mais contundente e mais belo, o rei divide o tribunal em porções de competência. Uma turma, presidida por Amarias, cuidaria dos assuntos relacionados à Lei, a Torá (Civil, Penal, Trabalho, Previdenciário, etc.) e a outra Turma, presidida por Zebadias, cuidaria dos assuntos relacionados com os atos do rei, o embrião do Dir. Administrativo, em fase de recurso, pois comum naquela época a desapropriação para interesses pessoais do rei ou do seu exército, além de avocar para si fazendas, pomares, vinhas, produções, guarnições, mantimentos e concubinas.
É extremamente enriquecedor, belo, majestoso, elucidativo e uma experiência maravilhosa encontrar um texto tão rico em relação ao Direito, pois nos dá a exata noção das origens do Direito moderno. Realmente, somente Israel e seu povo guiado por Deus para ofertar tanta contribuição para o mundo, dentre tantos outros aspectos importantes: ciência, filosofia, matemática, medicina, física, química, biologia, literatura, finanças, direito, contabilidade, administração, história, dramaturgia, etc., até os dias de hoje.
Pois, encerrando essa introdução histórica, passemos ao comentário necessário do porque do duplo grau de jurisdição e seu real valor num estado democrático de direito.
No nosso sistema jurídico, o duplo grau de jurisdição, ou, o direito de acesso a uma jurisdição hierárquica para fins de revisão das decisões judiciais, encontra registro implícito na Constituição Federal de 1988, conforme os incisos XXXV, LIV e LV do art. 5º, e que se transcrevem os mais diretos com o tema, verbis:

"LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;" (Grifamos).

"LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;" (Grifamos).

Há ainda os demais artigos constitucionais que contém ordem expressa para garantia de recursos ou nominam recursos específicos e com competência exclusiva de tribunais, como se vê nos artigos 92 à 126, a título de exemplo.
A garantia constitucional do acesso ao duplo grau de jurisdição se revela como desdobramento da linguagem expressa quanto a obrigatoriedade da observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
O Código nacional de ritos, o CPC(4), ratifica o direito e regra os tipos, modos e tempo dos recursos, assim como os seus requisitos. Demais leis esparsas, ao tratar de competência material específica (Dir. Proc. Penal, Dir. do Trabalho, Dir. Administrativo, Juizados, Execução Fiscal, etc.) também dão vazão ao comando constitucional da garantia de que toda decisão, judicial ou administrativa, comporta revisão por órgão hierárquico superior e colegiado.
Tal conceito advém também da perspectiva do nosso sistema jurídico que é o de conferir segurança jurídica aos atos, principiologia na qual se funda e que fornece o desdobramento da linguagem do Direito para todos os campos de sua incidência.
A segurança jurídica em nosso sistema é que dá suporte aos princípios mais importantes da Constituição, que confere o objetivo de vir a ser um estado democrático de direito, que são os princípios da liberdade e da igualdade.
Já discorremos em artigo anterior sobre a importância de tais princípios, conforme link:


Conforme prevê o inc. LV do art. 5º da CR, tem-se que todas as decisões judiciais comportam a possibilidade de revisão, mediante o recurso inerente.
Em matéria processual, os recursos para instância superior imediata possuem a nomenclatura técnica de recurso ordinário e os recursos para instância de 3º grau, para os tribunais superiores, com filtros e crivos de admissibilidade, possuem nomenclatura de recursos especiais.
Além da revisão do julgado, o recurso tem também por objetivo permitir o controle dos atos do juiz, a fim de afastar as arbitrariedades, os abusos, os erros, o ilícito.
Para um estado que propõe em seu seio o anseio por se tornar um verdadeiro estado democrático de direito, além de garantir e efetivar as estruturas para o respeito aos princípios da liberdade e da igualdade, deve garantir como desdobramentos dessas garantias primordiais, o direito aos cidadãos, quando litigantes, para que tenham acesso a que suas lides e pleitos sejam revistos por órgãos colegiados, de hierarquia superior e que tenha por atributo mais experiência no trato das matérias legais.
Esse estado, como garantia da publicidade e transparência dos seus atos enquanto prestador do serviço jurisdicional e por deter o monopólio de dizer o direito, visto ser vedado fazer justiça com as próprias mãos, deve ainda manter estrutura administrativa judiciária capaz e competente para instituir o duplo grau de jurisdição.
É evidente que esse mesmo estado deverá regrar as formas de acesso e os requisitos para admissão e revisão das decisões judiciais através dos recursos que visem o acesso ao duplo grau de jurisdição, a fim de que esta garantia não se torne uma banalidade e seja alvo de abusos dos que enchem os escaninhos da justiça, abusando dos recursos permitidos.
Nos países modernos, eficiência na justiça é também uma prática processual cara para quem descumpre a lei ou lesa o direito de outrem.
É do regime democrático, bem como do republicano, que as decisões judiciais ou administrativas comportem a possibilidade de revisão, mesmo que sob a faculdade do interessado, ou, em se tratando do direito da coletividade, seja feito de forma obrigatória, como vemos nos casos contra a administração pública lato sensu. Pois, do contrário, não estaríamos em um regime democrático e republicano, cuja gênese é permitir a discussão dos atos provenientes da sociedade ou provocados por esta, sob o ditame do princípio básico que é a liberdade.


[1] Iniciação na Ciência do Direito, São Paulo: Saraiva.
[2] Os 10 mandamentos são uma síntese de toda a lei dada, para melhor compreensão e assimilação do povo em seu cotidiano.
[3] Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
[4] Código de Processo Civil

2 comentários:

  1. Ilustre Prof° João,
    Excelente artigo ...

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  2. Anselmo Borella Junior5 de abril de 2010 às 09:45

    Professor João Damasceno.
    Realmente muito linda esta passagem, como também as demais da bíblia, Deus mostra a cada dia como é atual e completo.
    A sociedade é que teima em permanecer arcaica, atrasada e decadente.
    Mas ainda há tempo de melhoras, graças a Deus!
    Como cristão vejo que sua matéria trouxe com clareza como uma constituição séria baseada na bíblia traria mudanças radicais na vivência de qualquer sociedade, pois como diz a passagem, Deus é imparcial e não aceita suborno.
    Parabéns pela matéria, um grande abraço.
    Por acaso o sr possui um informativo? se tiver pode me incluir:
    borella@casagrandeadv.adv.br e borellajr@hotmail.com
    Sucesso! Paz do Senhor!!

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