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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

UM DIA FOMOS INOCENTES

GAZETA MERCANTIL – Análises e Perspectivas, p. A-3, 13.02.01

Os culpados são os outros, como definiu muito bem o existencialismo”

Cláudio Lachini – colunista

Todos sabem, juristas ou não, que nos Estados Unidos da América as pessoas são inocentes até prova em contrário. Nos países latinos, o Brasil em primeiro lugar por ser o maior, parece que somos todos culpados, até que provemos nossa inocência. É nossa sentença de origem divina, segundo a qual perdemos o direito ao ‘paraíso terrestre, embora a igreja de Roma, que isso propagou, tenha praticado crimes por mais de mil anos, desde as ordens militares da Idade Média até fogueiras ensandecidas, nas quais crepitaram sábios, santos, hereges, e pagãos. Talvez venha daí essa herança cultural de atribuir a outrem o que é de nossa freguesia, vício de caráter que os existencialistas definiram muito bem: os culpados são os outros. O anátema que a Europa, da qual descendemos culturalmente, lançava sobre os sarracenos incorporou-se à colônia e se espalhou ao inconsciente coletivo.

Mesmo quando o sujeito é pego com a mão na massa, e se encapuza com a própria camisa, se diz inocente. Culpado é o comparsa ou a sociedade. O direito diferencia culpa de dolo e, as vezes, o leigo confunde um e outro crime. O dolo tem ânimo de prejudicar, a culpa se tem por negligência ou falta de cuidado. ‘Não se pode imputar culpa a quem não fez o que não era de sua obrigação’, ensina o Direito Romano. O cronista não é jurista, nem juiz; portanto, não julgará, embora possa ser criticado. A verdade é que vivemos uma época atroz – às vezes, a vítima é parte do espetáculo que ‘a máquina de fazer doido’, isto é, a televisão, como dizia Stanislaw Ponte Preta, exibe ao vivo como se morto fora.

Outro dia, apareceu o caso de um cidadão dado por falecido em acidente, atestado de óbito passado, que acusava a irmã de ter urdido a tragédia de seu atropelamento para receber um seguro de R$ 25 mil. Era ficção que se confundia com a realidade, porque ambos estavam muito vivos. O morto, contristado, jurava inocência; a viva, Deus sabe em que estranho mundo se metera! A vida é uma ficção de si mesma, embora a dor, física ou moral, seja verdadeira, dor de tratar em estabelecimento apropriado, onde os doentes começam pelo último andar e terminam no primeiro, como em uma história de Dino Buzzati. Quem encontra guarida, tem o céu. A quem o mal se lhe agrava, desce um andar por vez, até perder a ‘vista para o mar’ e facilitar o esforço de lhe carregar o corpo.

Inocente quer dizer inofensivo como uma criança, que não faz nem produz maldade; é pura até que a sociedade venha a corrompê-lo. No Brasil, existe um estatuto da criança que, volta e meia, é invocado para deixar livre ou corromper o adolescente que sabe mais do que o dono de um bordel. Muitos são condenados pelo sistema cujas leis foram feitas a pretexto de os defender. Proíbem-lhe o trabalho que é confundido com a escravidão. O legislador cochilou ou se deixou influenciar pela riqueza, estado onde é correto brincar e estudar, onde um educador aplica o conhecimento para forjar o futuro. Onde estão nossos sábios de lapela, crachá de autoridade? Proibir o trabalho digno, apropriado e fiscalizado, é condenar o adolescente à marginalidade, se nem o Estado nem as instituições estão preparadas para os atender em suas necessidades elementares.

 Em 1951, meus primos Lourival e Nildo Fiorot e eu tomamos a empreitada de capinar e arruar um alqueire de cafezal. Tínhamos 11, 18 e 10 anos de idade, respectivamente. Íamos à escola todas as manhãs, uma caminhada de 6 quilômetros. Depois do almoço, pegávamos nossas enxadas, rastelos para puxar o mato e amontoá-lo onde havia perigo de erosão, e amalgamamos uma amizade que persiste, depois de 50 anos de separação. E, no entanto, estamos vivos. Tão saudáveis quanto permite a caminhada da injustiça humana. Ganhamos um dinheirão, talvez 300 cruzeiros. Era um extra, já que tínhamos tarefas rotineiras, como prender bezerros, alimentar o moinho de milho, torrar e moer café.

De qualquer modo, não nos demos ao ócio, pernicioso tanto na vida militar quanto na vida civil, segundo o conceito de Maquiavel. Os primeiros, quando não se dedicam a suas artes, conspiram; os segundos dedicam-se à desordem e à corrupção. Ou, se punidos por crimes dolosos, aplicam-se a cavar túneis sofisticados, iluminados, drenados. São especializados e suas penas poderiam se abrandadas se cavassem túneis para ampliar o metrô. De colher, não com máquinas ou pás.

Maquiavel não louva o trabalho, mas também não o considera ‘como a maldição do Gênesis sobre os homens’. Seu objetivo é o bem comum. O pai da ciência política atribui o sucesso das grandes civilizações do passado ao gênio de seus legisladores, acima de seus guerreiros. Estes, em nosso belo país, consideraram-nos culpados. Esperamos que os legisladores nos considerem como somos: inocentes, pobres diabos, grãos de areia na Terra, partículas de um átomo no Universo, até prova em contrário. E humanos.

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